sábado, 6 de fevereiro de 2010


Foto ilustrativa: Fernando Figueiredo - http://3.bp.blogspot.com/_3XKWZphabuA/SwwRwYybMSI/AAAAAAAABOw/M3TUuJ0hGV4/s1600/pedras+by+fernando+figueiredo.jpg
O louco e um punhado de palha
Emanoel Barreto

Vejo às vezes, na Avenida Roberto Freire, um louco a caminhar a esmo. Magro, alto, pele escura e curtida de sol, cabeça rapada com rigor, veste-se apenas com calção. Certa vez, quando parei o carro em meio ao trânsito congestionado, dedicava-se com atenção incomum a escavar junto a arbustos um buraco que somente ele saberia onde iria dar.

Hoje, em circunspecção tão só dele, recolhia de um monte de palha punhados daquele mato que, ciosamente, guadava em um saco plástico. Havia gravidade em seu gesto. Tinha, naquele trabalho ritual, comportamento magistral talvez somente comparável ao que se espera de alguém que componha excelso colegiado que estivesse a decidir os destinos do mundo.

Alheio, entretanto, às reuniões de tais colegiados, que nada têm de excelso, pois discutem coisas como fabricação de armas, devastação de enormes áreas florestais, planos para guerras, ganhos na bolsa e exploração dos desvalidos, ele estava distante do mundo, distante de todos nós.

Sim, digo, a quem lê este texto: acho que hoje encontrei aquele homem que Diógenes procurava com seu archote aceso ao meio dia. Acho que encontrei um justo. Plenamente inserido em seu mundo paralelo, buscava, num amontoado de palha, a razão de ser de sua existência.

Enquanto isso, o mundo, o nosso mundo, o mundo objetivo, segue também seu rumo: o de buscar, em outras palhas, o motivo para acabar com o próprio mundo.
Foi bom o seu dia?
Emanoel Barreto

A charge de Laerte, na Folha, encaminhou-me à pergunta que de alguma forma a fazemos todos os dias, mesmo que sem disso nos apercebamos: o que me reserva o dia de hoje? Creio que, inconscientemente, temos a vontade de que o dia nos seja bom, ou, pelo menos, pacífico, até mesmo monótono serve - pois antes a monotonia que atrapalharmos nossa vida com acontecimentos incomuns, desses que desestabilizam a cotidianidade previsível da sequência besta da vida, de manhã, tarde, noite: trânsito enlouquecido, doenças repentinas, notícias de devastações, etc..., etc..., etc...

Em outras palavras, a saudável preguiça de saber que tudo está no seu lugar e nada nos ameaça. Pois bem, meu dia de ontem foi abençoado com algo bondosamente inesperado. Fui agraciado com um rápido porém grandioso encontro com o jornalista Ubirajara Macedo, decano encanecido do nosso jornalismo, fulgurante na beleza humana dos seus 90 anos.

Sua figura branca iluminou meu dia e foi bom e ele anunciou-me para breve a publicação de sua biografia, um exemplo, sob a responsabilidade impecável do texto belo de Nelson Patriota. Ainda não tem data para o lançamento da obra, mas será breve, garantiu para minha alegria.

Hoje, o dia reservou-me a ideia de falar a respeito de Ubirajara, o que também foi bom. E agora ouço a Rádio Brasília, com coleante seção de jazz. Que bom, que bom que o dia, nos últimos dias, tem sido bondoso para este velho Barreto. Que venham outros e iguais dias.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O mundo político e o grito de goooooooooooooooooooooool!
Emanoel Barreto

O viscoso mundo político - seus acertos, comissões, omissões deliberadas, acordos e prebendas - é um vasto lodaçal onde crocodilos da coisa pública dormitam ferozmente. A primeira vítima, que na verdade é sempre um e se chama povo, será abocanhada mesmo que não passe por perto. 

O mundo político é feito de entendimentos vorazes, alianças tisnadas, nódoas que se escondem nos becos dos conchavos. Tudo é e tudo se permite. E a honradez é atiada aos arrabaldes da decência.

O mundo político tem por base as fidelidades de ocasião; e as juras da lealdade barganhada são negociadas numa bolsa de valores escancarada de vícios, que tem a commodity do voto a futuro cotada a peso de ouro. Longe, muito longe, o povo ouve esse tilintar, mas não sabe bem o que significa; mas suspeita de que está sendo enganado.  

Mas, no fim, o povo até aceita. E o mundo político se diverte com o povo que, agradecido, vibra e vai gritando: "Gooooooooooooooool!"
*A charge é de Glauco, na Folha.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Discurso, discurso, discurso...
Emanoel Barreto

O discurso, a mensagem como expressão sincera  - nem sempre -, do falante, é preocupação desde a ágora dos gregos. Essa elocução, para efeito de convencimento, manifesta-se na retórica, no entusiasmo vigoroso que dá às palavras, às orações, seu sentido social mais forte de cativar e convencer. Conquistar aliados e eleitores.

A charge de Angeli dá bem uma ideia disso. A busca do PSDB por um discurso que se contraponha à larga figura presidencial de Lula, cuja simples presença, em si, já é significante. É que o líder, o príncipe, traz agregada à sua figura uma espécie de fala presencial que alude a tudo o que já disse ou fez. Quem não atingiu esse ápice sabe bem o que é buscar um discurso.

Os tucanos têm em José Serra seu possível candidato. Mas a este falta o discurso histórico, a memória social quanto a seus feitos, a relevância do seu vulto nas paredes do grande museu vivo que é o tempo histórico.

Daqui a cem anos, só para citar um exemplo, quem será lembrado e estudado por historiadores, cientistas políticos e cientistas sociais: Serra ou Lula? Nem preciso responder. É esse o discurso que falta a Serra, a falta de vínculos públicos com todo um passado recente, quando o País ainda se revolve ante os resquícios de memória relativos à ditadura.

Tanto é verdade, que mesmo incensado pelos seus correligionários, o governador de São Paulo até hoje não se atreveu a dizer-se candidato, o campeão do tucanato. Espera, pacientemente, o desenrolar das pesquisas que agora sinalizam Dilma como aquela que poderá, pelos artifícios do marketing e pelas mãos do seu pai eleitoral, se apresentar como vacacionada a vencer.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

http://adevidacomedia.files.wordpress.com/2009/10/jornais-iv.jpeg
Como se (des)equilibra o jornalismo
Emanoel Barreto

Informação que me chega tendo como fonte a publicação Meio&Mensagem indica que a circulação dos maiores jornais brasileiros caiu 6,9% em 2009. Abaixo:


1. Caiu 6,9% a circulação somada dos 20 maiores jornais diários brasileiros em 2009. Onze títulos viram seus números encolherem durante 2009. Os dois que mais caíram foram os do Grupo O Dia, do Rio de Janeiro: O Dia (-31,7%) e Meia Hora (-19,8%). Também tiveram quedas Diário de S. Paulo (-18,6%), Jornal da Tarde (-17,6%), Extra (-13,7%), O Estado de S. Paulo (-13,5%), Diário Gaúcho (-12%), O Globo (-8,6%), Folha de S. Paulo (-5%), Super Notícia (-4,5) e Estado de Minas (-2%).

2. A liderança continua com a Folha de S. Paulo (média diária incluindo domingo, de 295 mil exemplares), seguida por Super Notícia (289 mil), O Globo (257 mil) e Extra (248 mil). Em quinto lugar está O Estado de S. Paulo (213 mil), à frente do Meia Hora (186 mil) e dos gaúchos Zero Hora (183 mil), Correio do Povo (155 mil) e Diário Gaúcho (147 mil). O top 10 se completa com o Lance (125 mil).

3. Apenas seis conseguiram melhorar seus desempenhos de acordo com dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC). São eles: Daqui (31%), Expresso da Informação (15,7%), Lance (10%), Correio Braziliense (6,7%), Agora São Paulo (4,8%) e Zero Hora (2%). Mantiveram-se estáveis: Correio do Povo, A Tribuna e Valor Econômico, que encerraram o ano passado com circulações bem próximas às do fechamento de 2008.
.....
A crise que afeta o jornalismo diário traz à tona problema antigo, agora salientado em função de que os números tornam-se alarmantes. Somando-se as tiragens de todos os jornais chega-se ao total de 2.098.000, para uma população 192.430.790, segundo dados que obtive junto ao IBGE.

Trata-se de circulação mínima, sem dúvida propiciadora de preocupação. Primeiro, pelo fato mesmo de a imprensa diária não ter a penetração que deveria; segundo, em decorrência da inexistência de público leitor fidelizado, o que significa gente desinformada. Não levo em conta aqui questões ideológicas apensas às informações e opiniões ou seja: questionamento a respeito da qualidade informativa e opinativa e sua credibilidade.

Sei, todavia, que a imprensa, mesmo com todos os seus erros, é um dos pilares de qualquer sistema social organizado e democrático, ao lado do Direito, Medicina e Pedagogia.

Mas, o que revela não apenas a queda das circulações e o históricamente baixo número de leitores? Implica que, para milhões de brasileiros, a imprensa diária virtualmente não existe ou pior: nunca existiu.

O jornalismo, aqui entendido com as empresas, precisa e deve mobilizar-se em estratégias de marketing, que vão desde questões de conteúdo e forma, até o estabelecimento de uma política de credibilidade - este, sem dúvida, importante fator para que um jornal fidelize leitores.

Vale lembrar que o leitor de jornal não é apenas consumidor, mas, antes de tudo, cidadão. E jornal, ao lidar com a mercadoria notícia, dá trânsito também  a conteúdo político-ideológico cujo tratamento ético deve ser o primeiro dentre os muitos que devem preocupar a uma boa imprensa.

Entendo que não estamos nos preâmbulos da morte do jornal impresso - como jornalista da área teria dificuldade em entender o mundo sem esse veículo ao qual dediquei toda a minha vida profissional -, mas temo que o mundo globalizado e os multimeios informativos, como esta internet da qual me valho, pode sim, em futuro distante, chegar a constituir-se em ameaça ao jornal impresso.
Olá, atualizo Coisas de Jornal ao longo da tarde.
Emanoel Barreto

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010


http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/dermiazevedo/dermi1b.jpg
O terror da ditadura
Emanoel Barreto

O amigo João Maria Alves, repórter-fotográfico e cidadão da vida, me envia ests texto da  IstoÉ que tem como assunto o pungente depoimento do jornalista Dermi Azevedo, meu amigo. Trata-se de registro jornalístico que, mesmo com o passar dos anos, a memória nacional não pode esquecer. Talvez a leitura se torne até mesmo casnsativa, pois o artefato internet não incentiva a uma leitura demorada. Mas vale a pena. (EB)

Carlos Alexandre Azevedo, 37 anos, torturado quando era bebê
Solange Azevedo

Ele tem olhos de aflição e feições de dor. Suas palavras saem cadenciadas, são quase sussurros. “Minha família nunca conseguiu se recuperar totalmente dos abusos sofridos durante a ditadura”, diz. “Os meus pais foram presos e eu fui usado para pressioná-los.” Carlos Alexandre Azevedo tinha 1 ano e 8 meses quando policiais invadiram a casa da família, na zona sul de São Paulo, e o levaram para a sede do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops). Era 15 de janeiro de 1974. Bem armados e truculentos, os agentes da repressão o encontraram na companhia da babá – uma moça de origem nordestina conhecida como Joana. Chegaram dando ordens. Exigiram que os dois permanecessem imóveis no sofá. Apenas Joana obedeceu. Como castigo pelo choro persistente, Carlos Alexandre levou uma bofetada tão forte que acabou com os lábios cortados. Foram mais de 15 horas de agonia. O drama de Carlos Alexandre – um dos mais surpreendentes dos anos de chumbo – veio à tona no momento em que o governo brasileiro discute a criação da Comissão Nacional da Verdade para apurar casos de tortura, sequestros, desaparecimentos e violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964-1985).

Carlos Alexandre decidiu revelar sua história, com exclusividade, à ISTOÉ depois que o seu processo de anistia foi julgado pelo Ministério da Justiça. No dia 13 de janeiro, ele foi declarado “anistiado político”. Deve receber uma indenização de R$ 100 mil por ter sido vítima dos militares. “Muita gente ainda acha que não houve ditadura nem tortura no Brasil. No julgamento, em Brasília, me senti compreendido.

As pessoas sabiam que o que eu vivi foi verdade”, alega. “A indenização não vai apagar nada do que aconteceu na minha vida. Mas a anistia é o reconhecimento oficial de que o Estado falhou comigo. Para mim, a ditadura não acabou. Até hoje sofro os seus efeitos. Tomo antidepressivo e antipsicótico. Tenho fobia social.” Fragmentos da vida de Carlos Alexandre, hoje com 37 anos, estão guardados na memória do pai, o jornalistae cientista político Dermi Azevedo. Outros ficaram entre as lembranças da mãe, a pedagoga Darcy Andozia. “Minha família sempre foi muito retraída, sem diálogo. Não costumávamos falar sobre tortura. Esse assunto sempre foi tabu entre nós”, conta Carlos Alexandre.

Ele descobriu o próprio passado ao remexer em gavetas, aos 10 ou 11 anos de idade. Misturado a fotografias antigas e a uma porção de papéis, encontrou o desenho de uma vaquinha, conhecida na época por simbolizar a “esperança”, com o seguinte recado: “Deops 1974: Quando você ficar mais velho, seus pais vão te contar a sua história.” Parte do sofrimento da infância lhe foi revelada pela mãe. “Cacá apanhou porque estava chorando de fome.

Os policiais falavam que, naquela idade, ele já era doutrinado e perigoso”, lamenta Darcy. Presas políticas disseram ao pai que o menino fora torturado no Deops. “Meses depois de sair da prisão, soube que o meu filho tinha sido vítima de choques elétricos e outras sevícias. Ele foi jogado no chão e bateu a cabeça”, afirma Dermi. “Maltratar um bebê é o suprassumo da crueldade.” Quando os agentes levaram Carlos Alexandre e a babá, Darcy não estava em casa – seria trancafiada no Deops horas depois.


“Até hoje sofro os efeitos da ditadura. Tomo antidepressivo e antipsicótico. Tenho fobia social”


Ela havia saído cedo em busca de ajuda para o marido preso. Aquela era a segunda invasão à residência dos Azevedo. Na noite anterior, policiais vasculharam todos os cômodos em busca de “material subversivo”. Encontraram um livro intitulado “Educação Moral e Cívica & Escalada Fascista no Brasil” e o consideraram uma injúria às autoridades. Dermi, Darcy e a educadora Maria Nilde Mascellani foram processados – e absolvidos – sob a acusação de tentar difamar o Estado brasileiro. Dermi e Darcy eram ligados aos padres dominicanos e a uma das principais vozes que lutavam contra a ditadura, o então cardeal de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns. Faziam parte da retaguarda do movimento de resistência – abrigavam militantes que se preparavam para embarcar para o Exterior.

O período de cárcere foi tenso e doloroso. Darcy permaneceu mais de 40 dias na cadeia. Foi pressionada psicologicamente, mas não sofreu violência física. Dermi ficou cerca de quatro meses no xadrez. Apanhou muito. Quando já não suportava mais a dor, invocava o nome d’Ele: “Ai, meu Deus. Meu Deus.” Enquanto Darcy esteve atrás das grades, Carlos Alexandre foi cuidado pelos avós – e continuou a sofrer as consequências de escolhas que não foram suas. “Em certos momentos, tive raiva porque meus pais expuseram os filhos. Mas depois senti orgulho porque eles lutaram contra os abusos dos militares e fazem parte da história do Brasil”, diz. Carlos Alexandre padece de um transtorno chamado pela ciência de fobia social: um medo excessivo e persistente de se expor à avaliação alheia. Quem tem esse distúrbio se esquiva sistematicamente de contatos interpessoais – principalmente com pessoas do sexo oposto, desconhecidas ou autoridades – porque teme ser humilhado ou rejeitado.

O diagnóstico foi mencionado pela psicóloga Ana Maria Falvino, que tratou de Carlos Alexandre, num documento encaminhado à Comissão de Anistia. No texto, a psicóloga detalha a evolução do transtorno no paciente e situações relatadas pela família Azevedo. Mas não afirma categoricamente que o problema dele é consequência direta de tortura. As situações vividas por CarlosAlexandre, no entanto, o inserem no grupo de risco descrito pela medicina. De acordo com o médico Márcio Bernik, coordenador do Ambulatório de Transtornos de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, cerca de 30% dos casos de fobia social têm origem genética. Os outros 70% se devem a vivências complexas.Os pais são o primeiro modelo para a criança.

Observar como eles lidam com as adversidades, se enxergam o ambiente social como fonte de prazer e alegria ou como algo desconfortável e ameaçador, se são tímidos ou têm muitos amigos, é de extrema importância para o bom desenvolvimento infantil. Bernik afirma que crianças provocadas e maltratadas por colegas e que vivem experiências marcantes de rejeição e de sofrimento são mais suscetíveis à fobia social na vida adulta. Logo que Dermi deixou a prisão, em maio de 1974, a família toda se mudou para a sua terra natal, o Rio Grande do Norte. Primeiro foi para Currais Novos, no interior do Estado. Em seguida para a capital, Natal. A violência psicológica e as agressões físicas – como as intermináveis sessões no pau de arara e os repetidos golpes na cabeça, chamados nos porões da ditadura de “telefone” – derrubaram Dermi. Durante um bom período, ele não foi capaz sequer de sair da cama. Passava o tempo todo coberto. Teve crises de paranoia e medo de tudo. Não podia trabalhar. O aperto financeiro desestabilizava ainda mais a família. Ele foi recuperando devagar a coragem de se levantar, ir à esquina, andar sozinho.

“Dermi não se destruiu. Transformou o trauma numa batalha pela vida e continua lutando pela dignidade humana”, avalia a psicanalista Miriam Schnaiderman, codiretora do documentário “Sobreviventes”, que narra experiências de pessoas que passaram por situações-limite. Enquanto Dermi tentava se recuperar, Darcy tinha de se desdobrar para dar conta da casa e dos filhos – do primogênito e de dois meninos que vieram depois. Carlos Alexandre demonstrou os primeiros sinais de isolamento já em Currais Novos. Não interagia comoutras crianças, tornou-se agressivo e andava sempre triste.

Às vezes, acordava agitado procurando pela mãe: “Mamãe, onde é o barulho do trem?” A sede do Deops, onde ele esteve detido durante algumas horas, era na região da Estação da Luz. De lá, dava para ouvir o som do vai e vem das composições. Apesar de a família estar longe de São Paulo, onde a perseguição seria mais severa, os Azevedo eram constantemente vigiados pelos militares locais e discriminados pela vizinhança. Viviam sendo apontados como “bandidos”, “terroristas” e tratados como se tivessem alguma doença contagiosa. Carlos Alexandre cresceu sob intensa pressão, testemunhando as crises do pai e a inquietude da mãe. Chorava para não ir à escola. Não suportava ficar distante dos pais. A instabilidade e a dinâmica familiar contribuíram para aumentar o afastamento de Carlos Alexandre. “A perseguição afetou os outros filhos, mas não de maneira tão intensa quanto ele”, relata Dermi. As mudanças de casa e de cidade eram constantes a ponto de os meninos não serem capazes de criar laços de amizade ou se adaptar completamente à escola.

O único período de relativa calmaria e imobilidade durou cerca de quatro anos – entre 1981 e o início de 1985, quando os Azevedo moraram em Piracicaba, no interior paulista. A filha mais nova nasceu lá. Todos eram respeitados. Darcy e Dermi tinham vínculo com uma universidade do município – já não eram encarados como “bandidos” ou “terroristas”, mas como intelectuais. E a ditadura militar caminhava para o fim. A saída de Piracicaba foi traumática para Carlos Alexandre. “Era o único lugar em que eu tinha amigos. Foi aí que me isolei de vez. Parei de estudar e me tranquei em casa”, lembra. Carlos Alexandre tinha acabado de entrar na adolescência. No interior paulista, costumava brincar na rua, jogar bola e frequentar festinhas vestindo short e camiseta. Não se importava muito com o figurino.

Os novos desafios da cidade grande o fizeram submergir no medo. Ele já não era mais convidado para festas, se sentia incapaz de dançar com as meninas e apanhava dos garotos cotidianamente. Quando tentava revidar, era pior. Apanhava mais. “Por ser introvertido, não ser muito bonito nem me vestir como eles, eu era humilhado e vivia sendo alvo de chacotas”, afirma. Carlos Alexandre sucumbiu à crueldade adolescente e se enterrou nas próprias fragilidades. Afirma ter passado cerca de sete anos (dos 13 aos 20) praticamente sem sair de casa. Tentou frequentar a escola. Não conseguiu. Nos momentos de nervosismo intenso, quebrava tudo o que encontrasse pela frente. Engordou 40 quilos em seis meses. Tentou o suicídio “algumas vezes”. Quando decidiu enfrentar o medo da rua, trabalhou como auxiliar de escritório.

Ficou um ano no emprego – seu recorde com carteira assinada. Depois atuou como operador de microcomputador e diagramador. Interagir era tão penoso que Carlos Alexandre pediu demissão e foi demitido diversas vezes porque não suportava conviver com os colegas de trabalho. “As pessoas começavam a perguntar da minha vida: o que eu fazia, se tinha estudado, se tinha namorada, quem eu era, aonde eu ia. Acabava ficando um clima ruim”, conta. “Estar no meio de muitas pessoas é muito cansativo para mim. Falar também. Sair de casa e sentar num bar é um incômodo muito grande. Mas hoje já não entro em pânico porque estou em tratamento.” Um ou dois amigos visitam Carlos Alexandre esporadicamente. Vão ao apartamento que ele divide com a mãe na região central de São Paulo. Seus outros – raros – amigos são todos virtuais. Ao optar pela rede, ele se protege da sociedade.

 “Quando rompo o ciclo vicioso, consigo até ter uma vida. Mas tenho muito medo de recaídas”, diz. Atualmente, ele costuma sair três vezes por semana para ir à academia. De vez em quando, vai à banca comprar gibis japoneses. Sua rotina é singela. Mas Carlos Alexandre quer mais. “Não sou feliz. Sinto vergonha de não trabalhar. Também gostaria de ter uma família minha, com mulher e filhos. Mas tenho consciência de que devo dar um passo de cada vez. Talvez, com um pouco de sorte, eu consiga recomeçar. Mesmo estando com 37 anos.”