sábado, 26 de agosto de 2006

Cuba está à venda? Os americanos pensam que sim

"Política tem esta desvantagem:
de vez em quando o sujeito
vai preso em nome da liberdade."
Stalislaw Ponte Preta

Pois é: em nome da liberdade, os Estados Unidos estão propondo a Cuba que seu povo seja, na prática, negociado pelo governo, tão logo Fidel morra. É o seguinte: os americanos propõem suspender o embargo de 44 anos, o torniquete ao povo cubano, caso, após a morte de Fidel, haja "uma transição democrática".

Transição democrática significa na prática a adoção do american way of life, devolução das propriedades expropriadas pelo governo fidelista aos antigos capitalistas, enfim, a destruição de todo um sistema de vida e de aspirações do povo cubano, pelo menos ao que eu sei.

A grave situação de saúde do líder cubano, para os americanos, sinalizaria o fim do sistema social e de poder hoje vigente na ilha. Não considero Cuba um paraíso dos trabalhadores, sei que ali a classe operária não chegou ao paraíso, Fidel é um ditador; entendo, entretanto, que o povo cubano, enquanto sociedade organizada, demonstrou historicamente sua capacidade de resistir e enfrentar o poder dos americanos. E, de alguma forma, há algo de grande que forma, na alma cubana, uma força poética, um sentido heróico de enfrentar o abismo.

De alguma forma, tal situação deve ser respeitada.Os povos têm o direito de escolher sua destinação histórica. Foi o que o povo cubano fez. Por sua vez os Estados Unidos não respeitam a autodeterminação dos povos, impõem seu sistema ideológico, seja pela força seja pela persuasão midiática e hoje ocupam hegemonia, ao que me parece, incontestável.

O grande objetivo do americano é dominar, impor sua vontade, espoliar os países de periferia, a fim de atender aos interesses do seu capital, especialmente o capital financeiro, parasitário e mundializado.

As condições históricas fazem supor que estamos vivenciando o fim de uma era. O que esperar da sucessão de Fidel? É um enigma. A História não se repete. Raúl Castro certamente não terá o carisma e a força do irmão, até mesmo pelo fato de que a situação histórica e o contexto internacional são bem diversos da época da revolução cubana, vitoriosa em 1959.

Agora, o mundo globalizado espera, com olhos de predador, pela queda de Fidel, para agarrar seu quinhão de Cuba.

Mais, muito mais, que o estreito território de Guantânamo...

sexta-feira, 25 de agosto de 2006

Liberação da maconha

Posse de droga para consumo pessoal deixa de ser crime

"O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 11.343/06 — a nova Lei de Tóxicos. A lei cria o Sisnad — Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas. O objetivo é “prescrever medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelecer normas para a repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas.

"O texto revoga as leis 6.368/76 e 10.409/02, ambas sobre o mesmo assunto. A principal característica é a descriminalização da posse de droga para consumo pessoal. Outra mudança é o aumento da pena para o tráfico de drogas de 3 a 15 anos para 5 a 15 anos, além de 500 a 1.500 dias-multa."

Parágrafo único. Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União."

DOS CRIMES E DAS PENAS
"Art. 27. As penas previstas neste Capítulo poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, bem como substituídas a qualquer tempo, ouvidos o Ministério Público e o defensor.
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo."


Os textos em grifo retirei da seção Consultor Jurídico, do Estadão. A legislação expressa uma evolução no trato do problema do porte e consumo de drogas, pois endurece a ação repressivo-punitiva sobre o traficante e assume uma visão humanista para com o usuário.

É precico entender que, quanto ao traficante, trata-se de um criminoso sobre o qual devem recair as ações policiais-jurídicas, de forma implacável. Quanto ao consumidor, mesmo que assim não se considere, é uma vítima, alguém que, por motivos os mais diversos, entrou em contato com substâncias, drogas ilícitas, assumindo para com estas um comportamento de dependência em maior ou menor grau.

Alguém dirá que a medida terá como conseqüência paralela alguma forma velada de incentivo ao consumo de drogas, uma vez que o usuário não será mais criminalizado. Estaria como que protegido por uma espécie de imunidade. Não creio. Na verdade, o que se impedirá é que milhares de jovens que se utilizam ocasional e fortuitamente de drogas deixem de ser presos, livrem-se de ser jogados em uma cela imunda, onde entrarão em contato com criminosos que, aí sim, os iniciarão no crime e numa espécie de vingança contra a sociedade.

E mais: para os que são efetivamente dependentes, haverá uma chance de recuperação, a possibilidade de tratamento em casas especializadas.

Espero estar certo. A intenção humanitária, confio, deverá superar as eventuais dificuldades que tal medida liberatória venha a acarretar.




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Coisas de Plutão

O jornalista e poeta Walter Medeiros envia o poema Plutão. Abaixo:

O sentimento do mundo
Numa única emoção
Hoje está em Plutão
Em seu desgosto profundo.

Não, não sou lunático,
Hoje sou plutônico,
E estou atônito,
Com choque fático.

Roubaram a paz da Lua,
Festejaram o Corrouteck,
Puseram o Harley em xeque,
No ar cada um flutua.

Já tem Pinterfinder em Marte
Com um samba de Aragão
Universo de ilusão
Por quê não te revoltaste?

Ato tão autoritário
De homens sem coração
Agora cassam Plutão
No fim do nosso cenário.

Setenta e seis anos olhando
Agora que descobriram
Astro que tantos já viram
Seu corpo não é redondo.

Pois agora tem só um
No meu sistema solar
Só Plutão vai povoar
A minha lente sem zoom.

A terra vai esperar
Que um dia de Plutão
Se olhe seu cinturão
Contornado pelo mar.

Quero ir para Plutão,
Defender o seu status
Não me renderei aos fatos
De tamanha aberração.

Como vão me convencer
Que só tem oito planetas
Se vejo em qualquer luneta
Que Plutão ‘stá a crescer?

quarta-feira, 23 de agosto de 2006

E então, foi proibido mostrar foto de mulher nua no metrô de Tóquio

"As celebridades não têm profissão,
trabalho, esforço, não têm biografia.
O pior é que os jovens acreditam nestas
pessoas e deixam de fazer coisas sérias por isso"
Nélida Piñon - Escritora

A Folha On Line está noticiando o seguinte: "O metrô de Tóquio recusou que uma imagem da estrela pop Britney Spears grávida e nua seja exibida em seus espaços para propaganda. Segundo a administração do metrô, a fotografia é 'muito estimulante' para os jovens japoneses. A imagem da cantora já havia aparecido em agosto na capa da revista norte-americana Harper's Bazaar e vai figurar na capa da edição japonesa de outubro."

No aeroporto de Confins, em Minas Gerais, há um grande painel que diz algo mais ou menos assim: "Os grandes monumentos de Belo Horizonte não estão nas ruas e praças." Em seguida, anuncia o nome de uma casa de prostituição de luxo, onde os "monumentos", mulheres belíssimas, cujas fotos ilustram o painel, são mostradas.

A foto de Britney na Harper's, a rigor, para o Ocidente, não tem maior apelo. Em verdade, ela, para os nossos padrões, até que está muito recatada, até porque a revista é voltada para o público feminino, cujas intenções ao folhear uma revista como aquela são bem diversas de um leitor da Playboy, por exemplo.

Mas a direção da revista e a direção do metrô de Tóquio encontraram uma solução: será colocada uma tarja sobre os braços da artista, cruzados sobre os seios, o que por si só - puro exagero - já impede a sua visão. Na tarja, um pedido de desculpas por esconder uma parte do corpo da futura mamãe.

No caso, temos os dois extremos: uma visão tacanha, tola, atrasada da direção do metrô - uma vez que Britney é um produto de consumo de massa, mas não uma prostituta - e a publicidade escancarada de mulheres de programa no aeroporto.

No primeiro caso temos no mínimo um equívoco; no segundo, um crime. E as autoridades locais sequer mexem um dedo. Na verdade, o ponto a que quero chegar é o seguinte: uma sociedade chegando à obtusidade em termos de organização e burocratização de comportamentos coletivos e, do outro lado do mundo, outra sociedade que permite publicidade de prostituição à solta.

O turismo sexual no Brasil tomou contornos preocupantes, não só pelo fato de que sinaliza interligações com o tráfico de drogas e aporte de criminosos, mas acima de tudo porque traz em seu vácuo centenas e centenas de jovens e mulheres de origem humilde, que vêem nisso uma solução de vida.

Britney é uma celebridade, um produto para consumo de massa, será usada pelo sistema, usará também o sistema do qual é parte integrante e um belo dia será substituída por outra. Ao final da carreira estará certamente rica.

A prostituta, ao contrário, terá chegando a um estágio de decadência tamanho, que, ao ver um antigo retrato seu, sentirá que não valeu a pena.

terça-feira, 22 de agosto de 2006

É preciso segregar esses nordestinos, senão...

"Apesar de que nasci no Norte,
sou caboco forte, quero trabaiá."
De uma antiga composição nordestina, cujo autor não recordo

Gilberto Dimenstein, na Folha de S. Paulo, deplora que o presidente Lula esteja "manipulando os nordestinos", com o objetivo de ganhar votos, distorcendo uma declaração equivocada de José Serra, candidato ao governo de São Paulo. Segundo o jornalista, Serra, ao comentar o problema da má educação no Estado, disse que isso decorre das migrações. Para Dimenstein, apenas uma frase equivocada, de um "intelectual brilhante".

Eu vejo de outra maneira, ou seja: Serra quis dizer que, pessoas que jamais deveriam ter saído de sua terra natal, tiveram a ousadia de entrar em São Paulo - já pensou?- e hoje poluem a cidade. Poluem socialmente, quero dizer. Todavia, entendo que não foi tão-somente uma frase infeliz. Acho que houve não um equívoco, mas um ato falho.

Sabe-se que o ato falho representa o real pensamento de quem o comete. É um escorrego mental, que trai o pensamento que está bem oculto ou disfarçado. Dimenstein sai em socorro de Serra e argumenta que má qualidade de ensino é fruto de uma situação complexa, não podendo ser debitada a imigrantes. É verdade.

Mas o equívoco do jornalista é o seguinte: Serra tem mesmo preconceito contra os nordestinos e isso pode ser constatado muito facilmente: não é de hoje que se diz que "São Paulo é a maior cidade nordestina", tamanha é a presença de migrantes oriundos desta região. E se a maioria dos migrantes é de nordestinos...

A questão do preconceito contra o Nordeste e seu povo é tão, posso dizer, violenta, que nos versos que transcrevi à abertura deste artigo o compositor diz que "apesar de que nasci no Norte, sou caboco forte, quero trabaiá." Ou seja: o sujeito da discriminação a expõe e até mesmo se expõe como chaga social, pecha, estigma, literalmente pede perdão pela sua origem e se coloca à disposição do patronato, implorando por um emprego, como se a sua disposição de trabalhar fosse não um direito, mas uma interferência na ordem da cidade grande.

A composição é antiga, tanto que o Nordeste é ainda chamado de "Norte". Como também é antigo, muito antigo, o preconceito nefasto que estabeleceu o Nordeste como um território de miséria, habitado por "paraíbas."

Quanto ao presidente Lula, ele mesmo um migrante, pode estar até mesmo tentanto se valer da situação. É muito comum em campanhas políticas, o uso de atos falhos dos adversários. Mas, de qualquer maneira, toca num tema de conteúdo pungente: nordestino é brasileiro; e ninguém é estrangeiro em seu próprio país.

Nota do Redator: durante o Governo Lula, o então ministro do Fome Zero, José Graziano, disse que é preciso impedir os nordestinos de migrar para São Paulo, para que os paulistas não precisem mais andar em carros blindados. Se serve de consolo, já que no Brasil está assegurado o direito de ir e bir, ficam elas por elas.

E aí, o véi começou a aboiar...

"Cabra bom,
não bebe água..."
Ditado sertanejo

Edgar Manso, zootecnista, preserva e gosta das coisas do sertão, sua gente, seu modo de vida, valores e crenças. Vez por outra me envia uns causos, narrando fatos bem sertanejos. Já acertamos para, em mais algum tempo, ele lançar um livro, pois as narrações na verdade são registros de uma cultura, um jeito de ser. Aí vai mais um causo do Edgar.

O velho Lima
A cidade de Passa e Fica localiza-se na região agreste do Estado do Rio Grande do Norte, já na divisa com o estado da Paraíba, sob a proteção da Pedra da Boca, uma formação rochosa belíssima que já se tornou uma atração turística na região. Faz menos de cinqüenta anos que Passa e Fica deixou de ser parte do município de Nova Cruz e se tornou emancipada; os moradores mais idosos contam muitas estórias desse tempo em que a “Princesa do Agreste” ainda nem existia.


Um desses moradores mais “rodados” é Seu Lima, pai dos meus amigos Carlúcio e Lau, e avô do presepeiro conhecido como Barba Azul e das belas irmãs Mônica, Vevé e Lelinha. Sua companheira de longa jornada é a dona Maria, mulher das mãos abençoadas na hora de cozinhar; a perna de boi com pirão que essa mulher faz é de“cego vê o mundo”. E a galinha torrada?... ôôôômi....

O velho Lima já está com oitenta e tantos anos mas continuava durão, forte, cabeça boa, e enxirido que só a pôrra, não podia ver uma menina passando na calçada que já ia logo dizendo:- Ô cepa, ô cepão. Há uns 30 dias , seu Lima teve algum problema que o deixou abobalhado, como se estivesse ficando esclerosado.

A notícia pegou todo mundo de surpresa, pois o velho Lima é uma pessoa muito querida na cidade. Muitos amigos foram visitá-lo mas ele nem os conhecia. Apesar de toda a tristeza é de toda gravidade da situação, o marmotento do Barba Azul, o neto do velho que mora na mesma casa do avô, nos contou uma presepada de seu Lima numa noite dessas que ninguém se agüentou de tanto rir.

O velho Lima, na sua juventude, foi um dos melhores vaqueiros da região, vaqueiro de pegar touro no mato, não é vaqueiro de pista de corrida não, era de “torar amorosa de peito nu”, como dizia ele mesmo. Pois bem, parece que a doença o fez relembrar esses tempos de labuta nas entranhas da caatinga.

Barba Azul contou que estava dormindo quando começou a escutar o seu avô aboiando por dentro de casa, isso era umas duas horas da madrugada:- Oxente? Vô tá endoidando, é? Eu num vou nem lá pra num dar corda ao véio.

E Barba Azul voltou para tentar dormir. Em vão, a zuada só fazia aumentar. Lá pras tantas, quando o “tóra rei” de grito já estava insuportável, Barba Azul escutou também a voz de dona Maria, sua vó. E pensou: - Eu vou lá ver que putaria é essa...

Quando Barba Azul entra na sala (pra seu Lima era um curral de carnaúba) ele tem uma crise de riso; dona Maria tentava pegar seu Lima pelo braço para lhe dar um calmante e ele “plantava-lhe” uma almofada na cabeça (ou seria um chicote de cipó de boi?) e dizia com raiva:- Rai prá lá raca réia, ôôôô, raca réia nojeeeeeeenta, rai, rai, rai, ôôô...

E pegue almofada no quengo de dona Maria. Mais tarde, o silêncio reinou no ambiente, Barba Azul e dona Maria foram dormir achando que seu Lima tinha adormecido no sofá (ou era um côcho de sal?). Na manhã seguinte, veio o grande final da estória, Barba Azul foi para o banheiro que fica no quintal da casa por amor de escovar os dentes quando escutou os gritos do avô:
- Naldinho, Naldinho, chega aqui meu fii. Chega aqui que eu peguei o boi!

Tava seu Lima deitado dentro de uma vala de água servida que passa no quintal da casa, agarrado com um pedaço de pau, se batendo todo e arrudiado de palhas de coqueiro pelo chão.- Naldinho meu filho, passei a noite lutando com esse frexado desse boi aqui dentro desse capim (as palhas do coqueiro), mas quando ele pulou aqui dentro de barreiro (a vala) eu lasquei ele. Tá pensando que faz o véi Lima de besta é bicho nojento?

Graças a Deus, hoje seu Lima está bem, está fazendo uso de medicamentos e se mantém calmo. Ainda bem.

segunda-feira, 21 de agosto de 2006

"Morreu, minha filha; foi Deus quem quis..."

Há momentos em
que silenciar é mentir"
Miguel de Unamuno

Li há pouco matéria no Estadão, abordando a questão do martírio sob o ponto de vista dos muçulmanos. O entendimento é de que o mártir, em sua luta contra os inimigos do islã, além de honrar a família, ainda garante aos seus um lugar no paraíso.

Isso lembrou-me uma visão de mundo entre os pobres do Nordeste, que, consolando os pais pela perda de um filho recém-nascido ou em tenra idade, chamava os pequenos defuntos de anjos, seguindo-se sempre o comentário de alguma comadre: "Tem nada não, minha filha, foi Deus quem quis."

Com isso explicava-se, no ingênuo senso comum, o final de um processo trágico de exclusão social: o menino ou menina filhos de trabalhadores despossuídos, vitimados em decorrência das péssimas condições de vida levadas por sua família.

Suponho que esse entendimento hoje não mais esteja tão arraigado aos pobres do Nordeste. Os anjos são os artistas e outras personalidades famosas e já não têm qualquer candura, muito pelo contrário, apregoam pela TV uma forma de vida hedonista, consumista e de modismos efêmeros.

Os costumes mudaram. Em vez do conformismo amparado pela religião, surgiu o desalento estimulado pelo cotidiano de privações, agora não mais no ambiente rural, mas em pleno e pulsante ambiente urbano.

Entretanto, persiste, na essência, o mal maior: as péssimas condições de vida de uma expressiva parcela da população - e isso não é coisa nordestina apenas. A pobreza e a miséria são bastante bem divididas no País. Minha abordagem quanto aos anjos foi apenas um recurso de entrada no assunto pobreza e ilusão do povo; miséria e manipulação do povo; fome e promessas ao povo, especialmente agora, no período eleitoral.

Com efeito, vivemos num país onde literalmente a condição angelical é dificilmente encontrável. O inefável, o cândido, o deslumbrar celestial, por aqui, talvez somente nas orações de alguma alma piedosa, voltada para obras sacras e pensamentos pios: no mais, trovejam e retumbam as manchetes sobre a corrupção, mas - a gente sabe, né? - nenhum dos denunciados irá para o inferno...

domingo, 20 de agosto de 2006

Matou um filho, matou o outro, matou o outro; depois suicidou-se

"O Senhor me deu,
o Senhor me tirou:
bendito seja o Senhor."
Do Livro de Jó

Desesperado, falido, um empresário matou a tiros, em Alphaville, um condomínio de alto luxo em São Paulo, os três filhos, suicidando-se em seguida. Sem contato com o ex-marido há dias, a costureira Maria de Fátima Diogo foi até o apartamento em companhia de um chaveiro e da polícia. Ao abrir a porta deparou-se, cara a cara, com a dor em forma de morte, num grito em corpo de angústia. Desmaiou. Foi aparada por uma amiga e pelos policiais, que a levaram a um hospital. Nada restou da antiga felicidade.

A notícia está no O Estado de S. Paulo. Contada assim, na frieza da técnica jornalística, a tragédia passa por você como uma paisagem qualquer, das muitas paisagens que habitam o território dos jornais.

Mas, dê-se ao trabalho de imaginar um pouco, percorrer sem pressa o caminho do horror. Uma família rica, um empresário de sucesso, tudo certo, tudo acima do normal, uma vida familiar como poucos têm neste País. Indo um pouco além dos aspectos econômicos e chegando ao plano mais existencial, temos pessoas que tinham à sua disposição, literalmente, o prazer, o prazer de estarem vivas.

Mas vêm os tempos da tarde, quando a noite da derrota se aproxima e de repente tudo se desfaz, a família se racha, o pai perde tudo, dopa os filhos com Lorax e depois, na furiosa calma dos que estão perdidos, mata, um a um, os filhos. Depois, vira a arma contra si e dispara. Pronto. Terminou ali todo um processo de vida, uma multidão de sonhos desabou, pessoas morreram, lágrimas estão regando o drama.

E, em algum canto, guardado em alguma gaveta da polícia técnica, o revólver dos crimes está parado, como a cobra descansa, até que um dia alguém a faça disparar o seu veneno de morte.