sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Minha entrevista com um mortuário

Certa vez fui pautado para entrevistar um senhor aposentado. Homem de idade já antiga, que vivia agora um tempo apascentado e gordo, untado de régios benefícios. Nada de extraordinário lhe acontecera para a tal entrevista, mas jornal tem disso: se alguém é amigo do dono pode sempre contar com um repórter para contar não-sei-o-quê.


Ele queria falar de si. Era seu aniversário. Fui. Encarei assim: é um apenas personagem, um personagem da notícia. Um ser passante como aragem numa tarde sem data. Isso facilitou a aceitação da matéria porque, em vez de perguntar sobre sua vida reta, monótona, ausente de imprevistos, desafios ou perigos por mínimos que fossem, eu trataria daquele drama inexistente: uma vida plana e sem planos, ajustada milimetricamente às recompensas que sempre conseguem aqueles que assim se locupletam.

O homem passara seu tempo todo sob o pálio de políticos e mandões, galgara postos de ociosidade em repartições públicas, enfeixara gratificações e incorporara até mesmo as horas-extras de sua inutilidade ao salário, e eis que então vivia à plena o retorno monetário de sua inapetência ao esforço, qualquer que seja ele.

Da matéria que fiz nada me lembro nem me esforço. Não vale a pena. Mas guardei, sim, guardei, o ambiente, a sala, o espaço de vivência daquele ser cevado a dinheiro que jamais havia merecido. Vivia em sua alargada casa em companhia apenas da mulher, uma senhora ampla, pesada, estofada por suas carnes velhas e gordurosas. Bondosa, inteligente como um nabo, farta como uma almofada, ela vivia na igreja a rezar e a organizar o pão-dos-pobres.

Ele, muito branco, movia-se com a agilidade de um leão-marinho. A boca mole parecia apenas dizer "plof" e nada mais. Encontrei-o na sala e ali fui recebdo. Era um ambiente amplo como as léguas, decorado por quadros religiosos; ícones de santos saltanto por todos os lados, aquela sala respirava um ar de coisa pesada, amolecida, adormecida com o peso dos anos.


Havia também retratos de família. Fotos antigas, imagens sérias que pareciam me fitar o tempo podo. Fotos de família: já reparou que, nesses santuários a que chamamos sala de estar, as fotos têm autoridade, têm aura, poder e uma espécie de força que reclama do visitante respeito e reverência? Foram pessoas sem maior expressão, mas, num lar, assumem a pose e a postura de um doge, gozando da fama inexpressiva de terem feito parte da família e ocuparem espaço naquele território.


As cadeiras, enormes, espaldar alto, algumas velhíssimas, a enorme mesa de centro recoberta de estatuazinhas, cortinas pesadas, embebidas de uma espécie de mau gosto casto e respeitável, o chão atapetado de um tapete pomposo, certamente reino bondoso para milhões de ácaros, assim era a sala.

Ali, tudo sabia a coisas de antanho, a um passado lustroso, brunido como um corrimão ensebado. Era uma espécie de decadência retumbante, mansamente densa e fartamente espalhada, penetrando à mais mínima reentrância ou ranhura. Ali havia um peso ocioso de gente que nada havia produzido, um cotidiano gratificante de mesmice parva e promissora de que tudo continuaria arfando como um grande corpo que dorme seu ronco de preguiça.


A sala era um mausoléu diariamente preservado pelas vidas múmicas que a habitavam cuidadosamente. A iluminação baça, quase esfumaçada, era como uma névoa de luz fosca, benvinda e parte daquele ambiente que não chegava a ser sinistro, mas meramente decadente e refestelado em sua suntuosidade de letargo.

A entrevista demorou, o homem queria contar toda a sua vida, heroicizar seus feitos amanuenses, engrandecer decisões de carimbo, destacar o plural do paletó aposto ao espaldar de sua cadeira de chefe. Suportei o quanto pude os seus dizeres, mas com ele não falava. Na verdade eu entrevistava aquela sala, aquela toca fornida de conquistas sem merecimento.


Consegui afinal terminar a entrevista. O carro do jornal viria me pegar. Não era sem tempo: aos poucos, eu fora dominado por um processo de sufocação, um calor enervante e grosso como uma tora de queijo gorduroso. Era insuportável viver mais um minuto aquela sala pegajosa. Assim, quando a boca mole ditou seu último plof, senti-me aliviado.

De repente, o carro do jornal buzinava à porta. Saltei o mais rápido que pude da cadeira, atirei-me à rua, precipitei-me à luz gloriosa do sol e agradeci por haver escapado daquele mortuário da usura.

Um comentário:

Unknown disse...

O curioso disso tudo é perceber que mesmo o tempo passando,hoje sinto a mesma coisa e me incomoda muito os parasitas,que são filhos de outros parasitas do passado,soltando seus "plofts" enquanto contam ser mais importantes que tudo e todos.