domingo, 23 de janeiro de 2011

Hrnfil- Continuação de memórias sobre a Coojornat

Um telefone valia muito dinheiro

A entrevista com Henfil, na casa do Comandante Graco, demorou-se por quase toda a tarde. Falamos de muita coisa: política, cartunismo, motivo de sua vinda para Natal, que à época 1977 não tinha ainda a aura de paraíso turístico. Então, qual o motivo?, perguntei; ele disse: queria tranquilidade e que aqui teria essa tranquilidade. Que não aguentava mais o Rio. Que estava encantado por Natal.

O diretor de Redação da Tribuna do Norte, Djanir Dantas, publicou a matéria sob o título "Zeferino chega a Natal e traz Henfil a reboque". Página inteira. Primeira página do segundo caderno, chamada de capa. 

Quanto a Zeferino, era a figura icônica do Nordeste, criada por ele: bigodão, vestido com os couros do vaqueiro, cintos de balas trançados em forma de "X", chapelão quebrado na testa.

Henfil, depois dessa entrevista, passou a frequentar regularmente a redação. O jornal começou a publicar seus cartuns, um dia depois do Jornal do Brasil. E foi assim que, em 1977, quando a Coojornat foi fundada, Dermi, Arlindo de Melo Freire e eu o convidamos a participar das reuniões prévias, a preparação do projeto.

Ele topou na hora. À época eu ocupava cargo na Fundação José Augusto: Coordenador Centro de Desenvolivimento Cultural. E era lá mesmo, na Fundação, que nós nos reuníamos. Henfil deu colaboração ao projeto como se fosse coisa do seu interesse pessoal. Sabia da importância da Coojornat frente ao momento político. 
A cooperativa, cerca de um anos depois promoveria um encontro de cooperativas de jornalistas, realizado na Fundação José Augusto, o que revelava sua pujança.

Foi um período bom e uma grande experiência conviver com Henfil. Generoso, anos depois, antes de deixar Natal de volta ao Rio, doou à cooperativa um telefone. Naquela época, para se ter uma ideia, um telefone era tão caro que entrava até em partilha de bens, era briga de herança.

Bom, por enquanto, é isso. Nos passeios que farei à minha memória tentarei lembrar de algo mais. Um bom final de semana ao amigo leitor.

-- Abaixo, texto do chargista Claudio Eldi, que conheci menino no Diário de Natal, para onde fora levado por Jorge Batista, grande profissional e hoje uma saudade imensa, precocemente falecido. O texto de Claudio foi publicado pela Revista Imprensa, junho de 2008. Tudo o que se segue é reproduzido da Revista.

Cláudio Eldi

Discípulo de Henfil, Cláudio é cartunista do jornal Agora São Paulo. Freqüentador da casa de Henfil em Natal aprendeu com o artista que deveria dar muita atenção à expressão fácil dos personagens e que, se necessário, era para usar um espelho para estudar a melhor expressão para seu desenho.

Conheci Henfil em Natal, na época em que ele lá morou, de 1976 a 1978. Estava começando minha carreira como chargista no diário natalense Tribuna do Norte. O colunista político do jornal, jornalista Woden Madruga, me apresentou a Henfil. Ele gostou dos desenhos que lhe mostrei e me convidou para colaborar com o Pasquim. Tinha eu 14 anos e o velho "Pasca" então era impróprio para menores de 16 anos. Podia desenhar para o jornal, mas não podia lê-lo.
Charge do Claudio - 7 de janeiro de 2011


Minha relação com ele era de mestre e aprendiz. Passei a freqüentar a casa de Henfil todas as quartas-feiras, dia em que ele mandava os seus desenhos, junto com os meus, para o Pasquim, via malote aéreo. Era uma casa bem espaçosa, muito agradável. Ficava na Praia dos Artistas. O estúdio de trabalho dele tinha uma janela com vista para o mar. Era uma maravilha, ventilado, iluminado. Como por ali entravam insetos, ele sempre tinha à mão um mata-mosquitos. Henfil era super organizado. No estúdio havia também uma grande estante, do chão ao teto, completamente tomada com caixas-arquivo, onde guardava todos os seus originais, catalogados. Ao lado da sua mesa, havia uma máquina de fazer fotocópia, bem moderna. Acho que era importada. Ele não mandava os originais para os veículos, mas sim fotocópias. Num corredor ao lado da sala, havia duas estantes, com livros, jornais e revistas. Eu sempre ia lá à tarde, ele ficava trabalhando enquanto conversávamos. Henfil era um sujeito muito generoso. Eu era quase um menino e ele sempre me recebia muito bem, apesar de estar muito ocupado.


Fazia, segundo ele próprio, cerca de 10 desenhos por dia, entre charges, cartuns, tiras. Além de publicar no Pasquim, nessa época ele fazia uma tira diária do Zeferino, para o Jornal do Brasil, uma página semanal para a revista dominical do JB, uma página semanal para a IstoÉ, uma charge diária para um jornal mineiro, editava a revista mensal do Fradim, além de colaborar com cartuns eróticos para a revista masculina Status e para jornais da imprensa alternativa, como Movimento e Em Tempo. Eu sempre saía da casa dele com as mãos cheias, com livros que ele simplesmente me dava, ou com outros que ele me emprestava. Às vezes, com o jornal Movimento, do qual ele recebia mais de um exemplar, ou o Coojornal, lá do Rio Grande do Sul. Aliás, ele incentivou a criação da Cooperativa dos Jornalistas de Natal, que editou um jornal, o Salário Mínimo, no qual eu publiquei e, salvo engano, ele também. Colaborou também com a Maturi, uma pequena revista dos quadrinistas de Natal.


Henfil dizia que o chargista devia ser sempre muito bem informado, ler tudo, até receita de bolo. Ele lia de manhã os principais jornais do país, e, muitas vezes, cortava algumas matérias e as prendia numa prancheta, que ficava no birô, ao lado de sua mesa. Um dos primeiros livros que ele me emprestou foi "Composições Infantis", de Millôr Fernandes, que ele considerava "o melhor de todos nós". Também os anuários dos cartunistas norte-americanos. Na época, eu não sabia ler em inglês, mas ficava maravilhado com os desenhos. Ganhei dele um pedaço de papel schoeller montado, um papel alemão importado, bastante caro. Era para eu treinar como colorir os desenhos. Ele mesmo cortou o papel com uma guilhotina manual, usada com muito cuidado. Hemofílico, ele brincava, "isso corta mesmo".


Nessas tardes em que o visitava, Henfil me ensinou muito e me deu muitas dicas. Insistia que deveríamos dar muita atenção à expressão facial dos personagens. Muitas vezes, usava um espelho para estudar a melhor expressão para o seu desenho. E me explicava as expressões e eu rachava o bico com suas caretas. Dizia também que a caricatura não deveria ser apenas uma deformação fotográfica da cara de um político, mas uma "síntese psicológica", que, com poucos traços, revelasse a pessoa retratada. Quando viu meus desenhos pela primeira vez, sugeriu mudar a minha assinatura, que para ele devia ser o mais legível possível. Eu assinava imitando a assinatura de Ziraldo, que eu descobri lendo a revista da Turma do Pererê. Segui o seu conselho e mudei mesmo. A partir dessa época, meus desenhos tinham a nítida influência do traço de Henfil, que fez escola naquele tempo. Muitos da nova geração do Pasquim desenhavam com o traço daquela escola, um traço rápido, nervoso, expressivo. Não sei bem quais foram as influências que Henfil recebeu. Ele admirava o desenho de Carlos Estevão, um pernambucano que publicou nos anos 50 e 60 e que desenhou O Amigo da Onça, no Cruzeiro, em substituição ao também pernambucano Péricles, que havia se suicidado. Mas aquele jeito de desenhar era o desenho da época, predominante, por exemplo, nos cartunistas do semanário francês de humor, o Charlie Hebdô, fonte de inspiração da turma do Pasquim. Cartunistas como Wolinski, Reiner.

Porém, o que de mais ele me ensinou, foi quanto ao papel do chargista. Henfil refutava o besteirol. Para ele, o cartunista deveria ter um alto senso de responsabilidade ao ocupar um espaço na imprensa. Deveria sempre fazer uma crítica contundente, um humor crítico, e não o mero gracejo com os donos do poder. Henfil tinha boas razões para dar tal conselho. O Brasil vivia numa ditadura, ele mesmo era uma pessoa politicamente engajada, e seu irmão mais velho, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, amargava o exílio no Canadá. Betinho havia sido a principal cabeça da Ação Popular, um grupo de esquerda católica, perseguido depois de 1964. Não dava, portanto, para se desperdiçar tintas se não fosse para reconquistar a democracia e transformar a injusta realidade social brasileira. E ainda hoje não dá...

Nós mantivemos contato esporadicamente. Ele deixou Natal em 1978 e veio para São Paulo, quando começaram a pipocar as greves no ABC paulista. Ele queria estar no centro dos acontecimentos. E eu me dediquei aos estudos, prestei vestibular e fiz Jornalismo na Federal do Rio Grande do Norte. Fiz política estudantil. Fui presidente do CA de Comunicação, do DCE, delegado da UNE. Em 1983, de férias em São Paulo, eu o visitei em seu apartamento na Rua Itacolomi, Higienópolis. Perguntou se eu continuava a enviar os desenhos para o "Pasca". Disse-lhe que não, pois achava que jornal tinha ficado muito brizolista. Ele me aconselhou a voltar a colaborar, pois, segundo ele, o Pasquim era a seleção brasileira do humor e eu poderia conseguir melhoria do meu contrato no clube em que eu jogava - o jornal lá de Natal. Henfil morreu em 1988 e eu desenhei para o "Pasca" até 1989, quando saí do Brasil e fui estudar artes gráficas na Escola Superior de Artes Industriais de Praga, na antiga Tchecoslováquia. Pouco tempo depois, acho que em 1990, o jornal fechou.


Henfil se destacava pela sua grande capacidade de fazer um humor crítico, lúcido e extremamente irreverente, com muita sintonia com a alma popular. Era dono de uma sensibilidade aguçadíssima. Outra característica impressionante era a sua imensa capacidade de criação e de produção. Eu o vi fazer 60 desenhos, às vésperas de ir para a China. Ele pegou um livro com recortes de charges antigas publicadas no JB, folheava e adaptava as idéias. Íamos conversando, e a mão ligeira desenhando. Sua cabeça era uma usina de idéias. Por isso tinha de fazer aquele traço ligeiro, para o pulso dar conta da velocidade com que as idéias lhe vinham à cabeça.

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