quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A Fundação da Coojornat e minha conversa com um investigador estúpido

Memórias minhas: "O presidente Geisel é um safado!"

A Fundação da Coojornat, dia 1º de outubro de 1977, resultou numa desagradável surpresa: para mim. Foi assim: nós havíamos alugado uma casa na Rua São Tomé, Cidade Alta, em frente ao Senac. Num sábado, poucas semanas após a fundação, faríamos uma espécie de inauguração festiva, um congraçamento. Cheguei por lá mais ou menos às três da tarde e, da rua, ouvi música. Som muito alto. Estranhei, porque não tínhamos contratado qualquer serviço de som, muito menos com aquela potência toda.

Parei o carro a uns 20 metros da Cooperativa, pensando: "Quem diabo contratou esse som?", e continuei andando. Quando cheguei em frente ao Senac, descobri: a música vinha do Senac, que promovia alguma festividade. Superada a pequena dúvida entrei na Coojornat e fiquei por lá, conversando com um e com outro. Nisso, entram dois sujeitos que se dirigiram a mim e se "identificaram": um era "jornalista" e, o outro, "bancário".
 
Estranhei a visita por um motivo simples: o que um bancário teria de interesse numa cooperativa de jornalistas? Conversando com os dois, o bancário era o que mais perguntava. Expliquei que eu era o secretário da Cooperativa e falei do projeto como um todo. Então, o que se dizia jornalista quis saber se eu tinha o estatuto da Coojornat. Respondi que sim, mas o documento estava em minha casa. Rápido, ele perguntou: "Posso passar lá, para ver os estatutos?", eu respondi que sim e dei o endereço.

Os tipos agradeceram e foram embora. Minutos depois chega Dermi Azevedo e eu conto o caso, já sentindo que boa coisa não fora aquela visita. Dermi disse: "Barreto, você ficou doido? Isso é o SNI, Barreto."

Respondi: "Dermi, eu sei, rapaz. Mas, quem não deve não teme. Os caras vão lá em casa lá para as sete da noite.Vamos ver no que vai dar."

E Dermi: "Então, tome cuidado". E cuidado foi o que não deixei de tomar. Avisei a um cunhado que morava vizinho e mim; e à minha mulher, grávida de nossa segunda filha, alertei que iríamos receber um mal elemento. Feito isso começou a espera. Meu cunhado ficou na sala da casa dele esperando para intervir se fosse preciso, enquanto minha mulher estava trancada num quarto.

Devo dizer: não sei se a pouca idade - eu tinha 26 anos - ou a convicção de que nada fazíamos de errado, mas a palavra medo sequer me passou pela cabeça. Havia, claro, a certeza de que alguém muito mal intencionado viria, mas o enfrentamento não me causou qualquer abalo. Estava precavido, intimidado não. 

Pouco depois das sete o sujeito chegou. Subiu os degraus e eu o recebi. "Boa noite, boa noite. Vamos sentar", foi o diálogo inicial. O elemento sentou-se a meu lado e aí começou um ridículo interrogatório travestido de conversa. O treinamento do agente, um reles espião de baixíssima categoria, era básico. Limitava-se fazer perguntas que tentavam levar-me
a dar respostas de contestação à ditabranda, como se fosse ele um jornalista insatisfeito com o regime em confidência com um colega.

Exemplo: "A Cooperativa trabalha para quem?
Resposta: "Somos uma entidade, uma cooperativa de mão-de-obra intelectual. Prestaremos serviços de assessoria de imprensa e teremos um jornal próprio."

"Vão trabalhar também para o governo?"
Ao que eu disse: "Se formos contratados, por exemplo, por uma Secretaria de Estado para fazer assessoria de imprensa ou um jornal, um houve organ, sim."

E ele: "Mas, aí, vocês vão perder a independência."
Eu disse: "A finalidade da cooperativa não se resume ao jornal próprio. Queremos ampliar o espaço de trabalho da categoria, entende? E saiba que isso não vai interferir em nossa independência."

E a conversa seguiu nesse tom. Eu sabia que tinha de dar respostas exatamente opostas ao que ele esperava de mim. Ou seja: se concordasse com tudo o que dissesse contra o governo daria ao agente munição para fazer relatório dizendo que a Coojornat era mesmo um célula comunista perigosíssima. E nesse conto de vigário eu não iria cair. Então, dava respostas as mais cândidas possíveis. 

Percebendo que a tática investigativa tosca não estava dando certo, a abordagem pura e simples da atuação da Cooperativa, ele partiu para o ataque direto: começou a falar mal do ditador Ernesto Geisel. Para o investigador era a última cartada. O agora ou nunca. Fechei-me em retranca e em nenhum momento concordei com o que ele dizia. Afinal o homem desfechou um golpe fendente: "Esse presidente é um safado."

Não sei de onde tirei um argumento inesperado, mas sei que que desarmou o sujeito: "Acho que não. Pelo que soube, ele já foi secretário da Segurança no Rio Grande do Norte - e disse lá um ano qualquer - e, nessa época, um rapaz foi preso sob acusação de ser comunista. Depois, descobriram que o cara não era comunista coisa nenhuma e ele, Geisel, foi pessoalmente libertar o prisioneiro."

Mesmo assim o investigador não se deu por vencido: Disse: "É, mas tem uns assessores escrotos..." O "assessor escroto", para o agente, era o ministro de Minas e Energia, Shigeaki Ueki que, se dizia, pensava em privatizar a Petrobras. O investigador disse isso com todas da letras: "Ele quer entregar a Petrobras." Aí eu comecei a ficar irritado com o nível sórdido da investigação e fui claro com o tipo: "Colega, você tem aí algum documento que prove que você é jornalista? Como você sabe, em nossa profissão tem muito picareta e dessa gente não gosto."

Ele respondeu: "Claro". E escandiu a palavra: "Claaaaaaaaaaaaaaaaaaaro!" Na sequência da resposta cometeu o erro que o desmascarou por completo: "É bom você me pedir o documento, amigo. Em nossa profissão tem muita infiltração. Nunca se sabe, né?"

Explicando: picareta, em jornalismo, é aquele cara que vive de expedientes, ganha propinas,  faz louvações, essas coisas. Infiltração, algo bem diferente. Era dito de pessoa de esquerda que atuava em qualquer ambiente visando difundir ideologia.

Pois bem: frente à resposta, fiz que sim com a cabeça e ele, pelo excesso de documentos apresentados, provou o que não era. Puxou do bolso uns dez documentos que o diziam jornalista: desde uma fajuta carteira de sindicato até uma autorização para cobrir visita presidencial à Paraíba estado de onde se dizia originário. Mostrou também carteira de radialista, noticiarista de não-sei-de-onde, repórter de jornal-fulano-de-tal, isso, aquilo, aquilo outro. 

Pronto, para mim, estava desmontada a farsa. Mas ele insistia: "Você me disse que tem os estatutos da cooperativa, não foi?
Eu disse: "Foi." E completei: "Por sinal, é idêntico ao da Coojornal, do Rio Grande do Sul, com pequeníssimas modificações relativas à realidade local."

Qual não foi minha surpresa quando ele disse: "Ah, mas se é assim, não quero."
"O quê? Não quer?", perguntei, já começando a me exaltar. "Não quer, porquê?"
Veja só a resposta: "Porque os estatutos da Coojornal nós - veja bem - nós já temos..."

Eu disse: "Um minuto." Saí um instante e voltei com o calhamaço na mão. "Pronto", disse. "O amigo veio buscar, o amigo vai levar." E quase atirei a papelada em cima dele. Acho que ali o agente viu que tinha perdido seu tempo: não iria levar nenhum relatório espetacular a seus maiores nem se jactar de haver descoberto um terrível complô comunista em Natal. 

Eu entreguei os papéis e fiquei de pé, grosseiramente de pé. Ele levantou-se, pôs o documento debaixo do braço, pediu desculpas pelo tempo tomado e já ia descendo as escadas para se perder na escuridão da noite, quando eu disse: "Noite dessas o amigo volta. Dessa vez vou lhe servir um cafezinho..."

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