terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A crônica que não escrevi ou de como conversar com a Morte
Emanoel Barreto

A crônica que não escrevi ficou embaralhada em meio aos papéis, letras, palavras, arquivos desarrumados que se acumulam em minhas mãos e por algum motivo não conseguem fluir pelos toques no teclado, seja da antiga máquina, seja do computador, essa pequena, ladina, vaidosa e irascível fera, pequinês zanho que às vezes me aborrece com seus truques de não obedecer.

A crônica que não escrevi transformou-se na crônica-que-não-escrevi porque está se ajuntando letra a letra na tipografia das mãos à procura de um instante-gutemberg. A crônica-que-não-escrevi é um momento manso, calmo como chuva que passou, pingo a pingo na goteira de meus dedos de caranguejo.

A crônica-que-não-escrevi é sábia, entende a espera, a maturação da Vida, porque sabe que as grandes coisas somente são feitas nos instantes finais - senão todas, pelo menos algumas delas. A crônica-que-não-escrevi talvez somente chegue quando eu estiver muito, muito, muito velho - se tiver tempo para envelhecer mais do que sou. Talvez somente se aproxime quanto eu estiver vendo fantasmas, conversando com espectros e chame a Morte de amiga e lhe dê o braço para caminharmos falado das coisas de Júpiter. Ela me explicando como me mover no Hades, a moeda no bolso para pagar Caronte.

A crônica-que-não-escrevi talvez somente fique pronta quando este velho estiver vestindo a armadura pesada de gladiador, pesada demais para um velho, mas necessária para quem vai à liça, empunhando o gládio e entrando na arena radiosa de sol de luz enlouquecida, os olhos cegos de tanta beleza solar, pronto para o último combate. E direi então à minha crônica: "Avante Amiga, honra e força!" E partiremos, eu e a minha crônica, para o espaço largo da arena e então faremos a saudação protocolar, soturna e grandiosa de todo gladiador: "Ave César, os que vão morrer de saúdam".

Um comentário:

Fagner França disse...

Esqueça essa crônica, professor. Escreva um romance, de fôlego, dois tomos, contando toda a história do mundo, ou talvez sua própria história, ou que sequer entre pra história. Mas isso o senhor tá devendo. Talento e inspiração nao faltam, basta sair em busca do tempo perdido...