sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Dou início hoje a uma série de publicações a respeito do Padre Heuzs, que após ter uma visão da Morte dedicou-se a matar criminosos numa favela. O personagem é produto da minha imaginação e não tem qualquer relação com pessoas vivas ou mortas

Crês em Deus, filho?
Emanoel Barreto

Heuzs. Petrus Apolonius Heuzs. Filho de classe média alta, desde cedo revelara vocação religiosa e dizia que ia ser médico. Do seminário para a faculdade aos 27 anos já era padre e médico. Inteligência aguda, leitor fervoroso, temperamento solar e carismático. Pediu e recebeu de seus superiores a missão de trabalhar numa favela; a maior, a mais perigosa, a mais abandonada pelos poderes públicos: a Favela do Remorso, conurbada à Favela do Raio, onde o tráfico e as quadrilhas disputavam palmo a palmo território e poder.

Heuzs fundou e dirigia o Dispensário José e Maria, onde atendia com perícia incomum os casos mais diversos: desde o menino doente da gripe mais tola, às situações mais graves: ferimentos a bala, facadas, membros dilacerados. Como os recursos eram poucos, mobilizava ajudas vindas de onde viessem; desde a doação do traficante mais brutal aos recursos provenientes de entidades de assistência públicas ou privadas. Mantinha em funcionamento a Rádio Coragem, com programação que ia até meia-noite. Ali a programação era toda feita por equipe de jovens que incentivava a solidariedade. Ali se contavam histórias de vida, faziam-se apelos em favor de famílias desabrigadas, tocavam-se músicas dos compositores da favela.

Heuzs trabalhava em parceria obsequiosa com o padre José Maurício Santos, 70 anos, seu mentor e confessor. E trabalhava de tal forma que conseguia transitar da mais honrada e pobre família às salas mais sombrias dos chefes do tráfico. Essa a sua grande vantagem: todos, à sua maneira, gostavam de Heuzs, o padre-menino, o padre-santo. Reunia em uma só pessoa o místico que orava e o médico que curava. E foi disso que se muniu para dar início à sua vilegiatura de revolta contra o que estava errado, contra o crime e os criminosos, a violência dos poderosos da marginalidade contra os pobres que não tinham coragem ou, se tinham, não podiam se defender. Os pobres não tinham afeição às armas, ao contrário de Heuzs, acostumado com o bisturi, sua arma de salvação de vidas, que viria a se transformar em arma de vingança.


Tudo começou quando Heuzs teve um encontro com a Morte. Certa noite, na humilde casa em que morava, assistindo na pequena TV em preto-e-branco a programa já noite alta, Ela entrou e lhe disse: “Heuzs, tens uma missão.” E ele respondeu: “Já o sabia.” Ela continuou: “Tua missão é salvar vidas.” Ele disse: “Eu o sei.” A Morte respondeu: “Salvarás vidas em detrimento de vidas.” Heuzs questionou: “Como assim? Sou padre e médico.” A resposta: “As boas vidas, Heuzs, tu as protegerás; mas, as más vidas, as vidas ímpias, tu as tirarás para que as boas vidas possam vicejar e crescer. Crês em Deus, filho?” Heuzs aquiesceu: “Sim.” Ela continuou: “Se é assim cumprirás o que eu, a Morte, te determinar. E saberás que estás seguindo o bom caminho. Vai a mata em nome da vida.”

A Morte se esfumaçou e Heuzs então perdeu os sentidos; mas, dia seguinte, uma névoa densa encobria o seu olhar e ele se sentia disposto a dar início à missão revelada pela estranha visitante.


(Continua)



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