segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Deadline, a linha da morte no jornalismo

"Era isso mesmo o que eu esperava:
comprar um cemitério."
(Assis Chateaubriand, ao comprar e recuperar o jornal Estado de Minas)

Muito antes que as prensas comecem a rodar, o jornal começa a ser feito. É um trabalho de equipe, intenso e coordenado. Como num jogo de passes, é preciso que cada jogador entregue ao companheiro o bastão da notícia. Notícia, esse objeto abstrato, que só aparentemente está expresso nas palavras. Na verdade, da notícia, enquanto mensagem, vale a compreensão, a representatividade do relato, o valor que previamente se dá a um determinado tipo de acontedimento, que deve ser importante ou interessante. Sem isso, nada de notícia. Importância ou interesse são essenciais.
Letras, palavras, fotos, ilustrações, tudo isso somente vale pelo que representa. E pelas consequências junto ao leitor. Vale pelo rumor social que pode causar. Em si, não têm essência nem consistência. O código é a expressão tosca do entendimento humano. E o jornal é a desesperada tentativa de captar o mundo, transformando em tinta impressa a pressa das pressões que o homem sofre todos os dias.
A notícia sobrepaira à página impressa, se espalha da mancha gráfica e se espraia no mundo. O jornal trabalha com um repertório de fatos que nada mais são que os padrões do mundo, as coisas que escolhemos como cotidianas. Mesmo que essa estranha cotidianidade jornalística sejam o inusitado, o grotesco, o excessivamente bom ou a maldade em sua mais requintada forma. De alguma forma, ao longo da História, a história da maldade se sobrepôs. O homem tem o dom do ruim.
A cotidianidade, rotineira e plana, é plena de um vazio e presivível viver. Assim, o jornalismo dedicou-se dar relevo àquilo que foge do comum. E, lamentavelmente, os atos de maldade superam em muito os comportamentos de caridade, solidariedade, humanidade e bem. 
E, ao trabalhar com tantos fatos, todos recheados de tensão, o jornalismo o faz sob pressão. É o que chamamos nas redações de deadline, literalmente "linha da morte", em português prazo fatal, hora-limite. Agora, se você tem uma profissão, digamos, convencional, cumpre expediente litúrgico, atende a uma pontualidade budista, sequer imagina o que é trabalhar numa redação, o que é ser jornalista. E se você gosta de ser assim, jamais seria jornalista. O jornalismo é a tranqüilidade em disparada. Ou, como já se disse, jornalismo é a História escrita à queima-roupa.
A matéria-prima do jornal é o mundo e seu almanaque de acontecimentos, o tal repertório a que me referi há pouco. Cria-se assim, entre o jornal e o leitor, uma relação analógica: o leitor sabe que, numa determinada página, encontrará, sempre, um determinado tema - política, esporte, polícia, economia, por exemplo - mas jamais pode, ou pelo menos não deveria, prever qual assunto será tratado.
Explicando: sabe-se que em política a corrupção é quase norma executiva. Político é quase sinônimo de ladrão, pelo menos no Brasil. Assim, a novidade jornalística é: qual será a nova corrupção a ser exposta? Ou, separando cada coisa: o tema é política&corrupção, esses dois irmãos siameses. Já o assunto é a novidade sobre o mais recente corrupto flagrado.
Mas o que quero falar mesmo é a respeito da questão tempo, em função do deadline e seu equivalente literal em português, "linha da morte". Em jornal, adquirimos uma vivência muito especial a respeito da questão tempo. Tempo não apenas enquanto aquele imperceptível passar de horas para o trabalhador de expediente litúrgico, mas para o jornalista, o trabalhador do tempo fragmentado, angustiado. 
Para nós, a convivência com o tempo é como conviver com o silêncio, ou com um lago calmo e profundo. Aparentemente, nada está acontecendo, mas, por trás do biombo da calma, o mundo está em ebulição. O grande problema é que os grandes acontecimentos têm algo de secreto, algo de sagrado. Os criminosos da política, por exemplo, disfarçam seu fervor pelo dinheiro e pelo poder em conciliábulos - perdão pela palavra - e confrarias que ocorrem às ocultas. Há um certo recato no roubar político. 
Compete ao jornalista descobrir esses segredos, tão bem guardados como os grandes venenos, aqueles que se ocultam nos menores frascos. E, o mais triste, é que um grande veneno é uma grande arte. Administrá-lo é uma forma de ciência; há um certo saber, no trabalho dos corruptos. Tanto, que neles demoram a ser descobertos. Suas doses são homeopáticas. 
O ladrão dos dinheiros públicos tem a perícia de um cirurgião ou a técnica de um pintor do Renascimento ao retocar, com suavidade, uma nesga de tinta. E o que é pior - dessa cicuta, o veneno de buscar sempre o novo, algo que também nos contamina - os jornalistas bebemos todos os dias. De algum modo os jornalistas morremos todos os dias, com o grande veneno do deadline. Mas renascemos, dia seguinte, com uma nova manchete.
Imagem: http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.almanaquedacomunicacao.com.br/files/images

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