sábado, 13 de novembro de 2010


Após receber carta do Marquês de Camisão, Alberany, o abominável, toma contato com estranha e refulgente floresta, misteriosa e encantadora e recebe ilustres explicações sobre o humano gênero. Em carta que agora chega, eis o que ele diz:

Terra Brasilis, 13 de junho de 1730 

A quem me lê, eis o que se passa e que agora vos digo,


Após receber, sumamente gratificado, nobilíssima carta do Marquês de Camisão y Astúrias, que agregou a seu digno nome tal  onomástica, devo dizer, gracioso leitor, recobri-me de alegrias e pulsa meu coração deveras.

Após isso, vesti-me de roupas amplas e cordiais ao meu título de Baronete, emplumado que agora sou da nobreza concedida, e dirigi-me a seus aposentos. Ali não estava o Marquês. Apenas algumas mucamas, belamente negras e desnudas, que o serviram à noite a bom prazer. Adonde está Sua Graça?, indaguei. E as vozes argentinas mo informaram: Encontra-se na sala central da casa, bom senhor.

A lá me encaminhei. Passos rápidos e pressurosos pensamentos a Sua Graça me levaram. Chegando à sala ali o achei: encontrava-se empoleirado à grande árvore que ali floresce, na companhia douta do papagaio e da anta, ambos bem próximos de si.

Antes de tratar dos grandes assuntos que mo levavam à augusta e sobeja criatura excelsa, busquei esclarecer a uma curiosidade e perguntei: Por que, Vossa Graça, tão luxuriante árvore encontra-se aqui plantada? 

Ah!, respondeu o Marquês de Camisão y Astúrias, eis que sou homem telúrico e aprendi desde cedo a preservar a terra e seus valores. Esta árvore é-me grandemente grata e a mim representa esta Terra Brasilis. Não vedes acima a claraboia feita no mais fino cristal da Boêmia? Respondi: Sim, eu o vejo. Então, continuou o venerável, que valorizo o sol que recobre toda esta pátria e assim o quero para bem cuidar da árvore onde nela me empoleiro. Há nesta Terra Brasilis tal fartura, de tudo e de algo mais, que aquele que dela se souber aproveitar será grande e obrará atos prodisiosos. Esta terra, Senhor Baronete, é uma grande fantasia. Por isso, dou-me o direito de flanar em meio aos seus dourados, fluir em meio às réstias que reluzem e sentir-me prazeroso em meio a matas gentis, povoadas de duendes tropicais, delícias delicadas e gentis mistérios. Ó, como amo esta terra!, disse, e vi-lhe a cair dos olhos verdes lágrima cortez e fidalga mui. Ó!

Após essa epifania percebi então: o Marquês era realmente homem de amor à terra e aos seus chãos e matas, animais e outros viventes. Eis o que vi: toda a sala havia sido transformada em floresta tropical e linda. A luz do sol refulgia nos matos e em outras plantas e o verde resplandecia em miríades de matizes. Pássaros formosos volteavam a meu retor, felinos de bom porte caminhavam mansos. Ó, disse eu, pasmo de mim mesmo. Ó, eminente senhor de muitos talentos, quão grandiosos são vossos misteres e ilustres desígnios, ó!

Logo em seguida, todavia, eis o que se mo deparou: notei que dentre os animais caminhavam seres estranhos, todos de penas revestidos. E quem são, disse, tais seres, machos e fêmeas, todos nus a caminhar acá? 

Disse o Marquês: Tais animais são chamados índios e deles trouxe alguns espécimes para meu refrigério e prazer intelectual, a fim de os estudar. São, posso-vos dizer, estranhemente inteligentes e se comunicam em alguma forma de linguagem e isso dá-me a obscura sensação de que são alguma espécie de humanos, mas, sinceramente, não o creio...

Mas, Vossa Graça, disse eu, não falais com a anta e com o papagaio? Seriam eles mais humanos que tais bestas? Não há aí, respeitosamente vos inquiro, algo de paradoxo e estranho? Respondeu-me o magistral senhor: Caro Baronete, eis aí o vosso engano. Homens são aqueles a quem os poderosos assim o reconhecem e lhes apõem direito. Quem não tem direitos homem não é. Não vedes que o papagaio repete tudo o que digo?, e que a anta cumpre tudo o que lhe determino? Sim, garanti. Vejo. E ouço, acima de tudo, ouço.
 
Pois, bem, redarguiu. Só é bom e justo, equânime e eficaz, aceitável e justo, aquele que me concorda e faz de tudo o que me apetece. O diferente é errado e mau, é sedição e reboliço, ameaçador e duvidoso e portanto proscrito está. Assim, se digo que são índios e não homens, são índios e não homens. Para comprovar o que afirmam meus conhecimentos e ciência, digo-vos: já os vi em combate e matanças. Munidos de lanças e de arcos e de frechas e de clavas, agridem-se cruelmente e tais armas produzem ferimentos horríveis, esmigalham crânios e outros malfazeres. 

Nem devo dizer que ante tais atrocidades determino a minha guarda que os domine, a fim de que não se extingam, já que é de interesse da ciência estudar a tais entidades da selva. Além do mais, devo mencionar, fornicam à vista clara, como fazem os cães e as cadelas, os touros e as vacas. E se uma coisa é igual à outra, quem as perpetra é o mesmo em si, mesmo que de aparência diferente.

Tomado de espanto, e reunindo minha pouca coragem, quis saber: Mas, Vossa Graça, se eles se atacam e se insultam, se ferem e se matam, isso não é a prova maior de que são homens? Não é nosso também, que somos brancos, o exercício do mutilar e ofender, esganar e estripar, maçar e esfaquear? E também não fornicamos, às vezes nem mesmo às escondidas? Isso não estabelece a ligação nossa com os animais? Não foi esse o vosso raciocínio? E se os índios sendo animais e igual a nós agindo, não são eles gente também? Ou então nós também somos animais...

O bondoso Marquês riu-se e riu-se muito. E justificou sua teoria, no que concordei imediatamente: Meu caro Baronete, não vedes que nossas armas são muito mais evoluídas? Não temos o trabuco e o canhão? Sabeis que as peças de fogo foram inventadas ainda no ano 1300? E que conclusão disso tirai?

Vi-me perdido e sem argumentos, a não ser a suposição íntima de que uma arma é uma arma. Seja na mão nossa de brancos ou na mão do animal índio. Mas, digo-vos, não tive coragem de contraditar, quando o Marquês asseverou: 

Isso, nobre Baronete, comprova que no homem o poder da morte é evoluído e sagaz, ao contrário dos índios. E que tal proceder resulta de nosso enorme saber porque pensamos e, pensando, agimos segundo uma óptica racional e é racional matar com métodos avançados, não com maças e frechas. Nossas armas, que usam pólvora, resultam da ciência. E a ciência não tem lado ou tratos com opiniões. A ciência é isenta e criadora e não para nunca. A ciência é a feitiçaria do cérebro virtuoso do civilizado. E se por acaso dela resultam morticínios e guerras é tudo em nome da humanização e da civilização e de novas descobertas. Assim, a pólvora, meu estimado Baronete, é o símbolo maior da humanização. A pólvora, digo-vos, permitiu-nos criar o canhão, o arcabuz, a pistola e o pistolete. E o que disso resultou? Resultou que os mais inteligentes, portanto mais humanos, dominaram os que tal ciência não tinham, e digo-vos agora uma das  maiores conclusões da minha ciência plena: em sociedade há os que são mais humanos e menos humanos.Os mais humanos predominam pois dominam a pólvora e o canhão. Os menos humanos, não. E é assim e assim que deve ser. Daí porque há pobres e ricos, dominadores e dominados. Comprendeis vós? 

Sim, disse, eu o compreendia. As armas evoluídas provavam nossa superioridade humana e a diversidade de humanos na própria humanidade.

Mas, ai, nobre leitor, alonguei-me demasia nestas narrativas, pois que muito me impressionaram a floresta do Marquês e seus estranhos animais. E em assim fazendo negligenciei meu intento primeiro, que era vos contar os planos que tinha ido a traçar com o Marquês, para a construção de sua pirâmide, agora que se considerava faraó e queria todo o povo a nela trabalhar. 

Se lestes minha missiva anterior, sabeis do que estou a vos falar. Se não, fazeio-o agora, que já me apresto a vos enviar novo comunicado em breve. Logo logo tereis então a continuidade do que vos tenho a dizer.

Saudações a Vossa Mercê, ilibado leitor.
Deste que vos preza e mui,

Baronete Alberany, ainda o abominável

Nenhum comentário: