Terra Brasilis, 12 de junho de 1730
Aos que acompanham minhas andanças e sórdidas tropelias, segue-se o que se diz:
Quem me falava assim era o douto papagaio do Marquês de Camisão, explicando planos para a elevação dos parvos. Disse, e com ele concordei, que tais seres precisam ser domados ao bom pensar. E como o faremos?, perguntei. Da seguinte forma, detalhou: na cabeça de cada um será aposto um círculo de ferro, uma espécie de cinturão, a ser apertado ao máximo. De tal forma, que este jamais será retirado, seja em futuro próximo ou longínquo.
Para quê?, questionei. Muito simples disse-me o sábio papagaio: para que os poucos pensamentos que lhes subsistem em tais cérebros atrofiados ali permaneçam. E a esses pensamentos se lhes ajuntando informações e sabenças pelos sortilégios de aulas e exercícios. A anta, também conselheira do Marquês, aproximou-se e sussurrou: tais sabenças serão o manejo da pá e da enxada. Para quê?, busquei saber. Para que cavem buracos. Buracos? Sim, buracos. Buracos são importantíssimos, completou a anta.
E para que tais buracos? Muito simples: eles serão mantidos ocupados e, mais que isso, tais buracos serão vendidos a grandes homens de países distantes e exóticos. Buracos de todos os tipos e tamanhos. Neles serão enterrados os mortos, que em tais países se mata muito e é grande a demanda por buracos. Esses líderes são famosos por suas atrocidades e como já mataram quase todo o seu povo falta-lhes mãos para cavar buracos. Vi que ali, em tão terrível companhia, poderia exercitar todos os meus misteres mais terríveis e propus: por que não vendemos também cárceres?
Ó, disse o Marquês de Camisão. Ó mente privilegiada e humanista e culta. Eis que me chegastes, vós e vossos benfazejos sequazes em boa hora. Por que até então não havíamos pensado na venda de cárceres? Carceres portáteis, disse eu. Cárceres que serão vendidos a reis e imperadores, sultões e grão-vizires, déspotas, baronetes e tiranos de todos os tipos e estirpes. Sim, completou Peró, um dos malandros que me acompanhavam. Esbirros e beleguins, verdugos e matadores por lei serão os guardiães dos cárceres e terão assim diminuído o seu trabalho e prestimoso labor.
Sim, porque, preso, todo o povo ficará admoestado a não se mover e a estar aprestado a qualquer hora e a qualquer momento a ser morto e levado, cada um, a buraco que lhe seja de direito. Que grande obra!, exultou o Marquês.
E ficou decidido que seríamos fabricantes de buracos e cárceres portáteis. Comandei a nossa turba que foi às ruas e aos arruados, às aldeias e aos rincões, aos longes e às misérias e de lá nos trouxe, acorrentadas, centenas de homens que logo foram postos a construir buracos e cárceres. E toda a nossa produção foi vendida.
Que mais podemos fazer?, indagou o Marquês. Senhor, disse-lhe eu, faremos maravilhas. Se mo permitis, vetiremos camisões iguais ao vosso, eu e toda a minha grei. E, como fazeis, daremos saltos enormes e, inflados pelo ar contido nas largas dos camisões, flutuaremos ao céu e todos nos verão como seres extraordiários, alumbrantes e faustosos em nosso voo de prodígios.
Ó, exclamou o Marquês. E logo estávamos todos vestidos de camisões. Fomos à mais alta torre da mansão e de lá nos atiramos a flutuar pelos ares. E todo o povo se curvava ante tão subida demonstração de grandeza. O Marquês, à frente, liderava nossas evoluções. E todos nós gritávamos: dinheiro! Dinheiro, miseráveis! Não vedes que estais a presenciar coisas excepcionais e imponderáveis prodígios? Então, dinheiro! Dinheiro! Dinheiro!
E pobres e ricos se dobravam e atiravam ao ar suas moedas. Que eram magistralmente recolhidas pelas mãos insolentes dos nossos mandriões, velhacos e cafajestes. Com o passar do tempo começamos a ficar pesados de tanto ouro que alguns de nós ameaçavam vir abaixo. Decidimos voltar à mansão do Marquês, ali depositando em um subterrâneo toda a fortuna recolhida aos tolos.
Erguemos brindes e festejamos muito toda a noite. E eis que, ouvindo o nosso alarido festivo e irresponsável, aproximou-se da mansão um velho muito rico, tabelião e usurário. Soubera de alguma forma dos nossos solertes intentos e viera propor sociedade. Desmontou de seu cavalo ricamente ajaezado e foi convidado a entrar. Logo nos pôs a par de seus maléficos propósitos: tinha em seu poder documentos e contratos de ricos indivíduos. Forjaria a transferência de tais bens para o seu nome e o nosso se lhes déssemos participação em nossas execráveis empreitadas.
Fingimos que sim e ele logo falsificou os papéis. Tão logo o fez, apoderamo-nos de sua figura e o surramos com inteligência e grande habilidade, enquanto gritava: que espécie de patifes sois? Nos vos acabei de dotar de grandes cabedais e imensos tesouros? Não sou vosso sócio, ó súcia de má-fé? E respondemos não o sois. Sois sim nosso prisioneiro e trata já de firmar documento abrindo mão de vossa sociedade. Ele resistiu, mas nada que uma nova e boa sova não o fizesse mudar de ideia.
E agora, o que faço?, perguntou, agora que estou na miséria e serão sombrios os meus dias? Logo lhe demos firme resposta: foi levado a cavar buracos e a construir cárceres, num deles sendo logo posto a ferros.
Numa próxima correspondência contarei como esse indigitado conseguiu se safar de nossas garras malsinadas e vir a se tornar colaborador de nossas infâmias e outras ameaças.
Do vosso respeitoso e mui,
Alberany, o abominável
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