segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Nova carta de Alberany, o abominável, que em suas tropelias descobre o que é democracia

Londres, 30 de maio de 1730

Ao temerário que me lê e assim aprende meus vis ensinamentos, devo dizer que acautele-se dos meus exemplos e afaste-se de meus misteres. 


Eis o que se diz,

Devo dizer-vos que encontro-me em deplorável estado e entregue à mais miserável condição. E navio que se apresta a partir e vai levar-me, deve dirigir-se ao país de On que não sei aonde fica nem como agem os seus certamente horrendos habitantes. É bem triste a minha moira e lúgubres pensamentos acodem à minha
funesta alma.

Estou encarcerado na Torre de Londres, onde vim parar após arruaças cometidas, bem como tropelias e golpes que tentei aplicar em velhinhas e viúvas. Já havia eu adquirido grandes cabedais após explorar tão gentis e tolas criaturas quando eis que o filho de uma delas, soldado, vezou denunciar-me à guarda e agora eis-me aqui ao lado de súcia de malfazejos bem piores do que eu.

Agora estou a ferros, já deixei a Torre e me encontro na embarcação, nave de sinistro aspecto habitada por tripulação composta por homens de má catadura. São gentalha vinda de todas as partes do planeta: Birmânia, Índia e da própria Inglaterra; Sumatra, Jamaica, Portugal, México e Alto Volta; homens de Goa e de França; magiares, colombianos e egípcios. Ainda os há e outros e muitos mais, mas detenho-me aqui. A lista seria infindável.

O Capitão, homenzarrão caolho, mandou-me há pouco dar-me 50 golpes de vara para eu aprender as regras de bordo. Aprendi rapidamento, devo dizer. Agora, após mais de doze horas de trabalho rude limpando o assoalho do convés, subindo e arriando velas, correndo para lá e para cá, estou atirado ao porão em companhia de péssimos indivíduos que riem da minha sorte e até planejam também surrar-me. São impedidos pelo chefe desta grei tão malsinada que, não sei por que, apiedou-se de mim.

Veio a conversar e falou-me do país de On. E anunciou que trata-se de terra estranha, mas não quis dar detalhes. Devo prever horríveis suplícios e tamanhas pragas que sequer cabem, mesmo em pensamento, em meu cérebro avilanado. Mas, decidido estou: tirarei proveito de tudo, que é da minha natureza lucrar e espoliar.

Afinal chegamos a On e aqui todos obedecem a alguém a quem chamam de Senhor Príncipe Sereníssimo que de sereníssimo não tem nada. O que vejo é um homem coberto de pêlos, sem qualquer tipo de roupas, cercado por suas esposas e concubinas, todas nuas elas também. Ele salta a guincha como um macaco. Dá ordens e todos rolam pelo chão. Estranhei como um dignitário assim se expõe, bem como às suas mulheres. 

 Diante do que acabo de narrar começo a temer pela minha vida. Preciso logo logo encontrar alguém igual a mim para me safar e, se puder, roubar a todos ou a quem disso conseguir.

Perguntei o que era aquela aquele espetáculo degradado e me foi explicado que o Senhor Príncipe Sereníssimo fora alvo de elegante, grande e excelsa cirurgia feita por seu médico particular, um burro. Que lhe havia retirado o cérebro e em seu lugar colocado o cérebro de um gorilha, fazendo operação inversa no gorila. 

Quis saber por que, e me foi dito que o Senhor Príncipe Sereníssimo não gostava de pensar nos problemas do seu reino de On e assim havia determinado aquela louca experiência. Desta forma poderia brincar e divertir-se com seus seres fêmeos, cabendo ao gorila administrar o país, de tempos em tempos lhe prestando contas. E o gorila, diligente administrador, havia instaurado no reino algo que chamavam de democracia, o que muito agradara ao Senhor...

Logo sabereis do que se trata essa tal democracia.

Mas, voltemos ao assunto do Senhor... Pelo que vi e soube, logo percebi que o Senhor... era um finório igual a mim, aproveitador e ocioso e dele logrei me aproximar, oferecendo-me como seu criado de câmara real. Ele bem acolheu a minha súplica e logo estávamos, eu e ele, saltando e guinchando para todos os lados, e bem feliz logrei tornar-me. Até tinha acesso a algumas das mulheres do Senhor..., as mais velhas e feias, é claro.

O Senhor..., então, certa noite, levou-me a passear pela capital de On e observei que todos eram chicoteados sem motivo algum. Uma guarda especial, os janízaros chicoteadores, era encarregada de tão vil procedimento, que era cumprido com prazer e emoção.

Mais estranho ainda era o fato de que nem os chicoteadores escapavam e também levavam graves chicotadas. E não raro se via um chicoteador chicoteando outro chicoteador que chicoteava outro chicoteador que chicoteava outro chicoteador que chicoteava outro chicoteador e assim por diante. E havia também pessoas que chicoteavam as outras, quando os chicoteadores estavam cansados a ficar.


Reinava o pandemônio e a desordem e todos corriam em desespero. E todos gritavam que ali havia mesmo pandemônio e que pandemônio quer dizer pandeiro do demônio. Estava bem explicada aquela insalubre vida.

Perante tal quadro de demência perguntei se não havia algo errado, pois jamais vira um opressor sofrendo da sua própria opressão. Então o Senhor... após dar salto altíssimo, de mais de dez metros de altura, emitir impressionante urro e cair por terra rolando e grunhindo, me explicou que aquilo era a... democracia.

Então, democracia é dar surra nos outros?, quis saber a respeito de tão estulto sistema político.

O Senhor... não respondeu de imediato. Mas salientou que o gorila era homem de grande saber, viajor de muitos países onde conferenciara com filósofos e pensantes, mestres e metafísicos, estudiosos e positivistas, estudiosos dos portulanos e fazedores de fogo e outras ameaças; enfim, seres que, sinceramente, não sei o que são nem para que servem. Mas não importa. Veja o que se segue.

Insisti em saber o que era aquele etúpido procedimento e porque recebia tão inusitada desginação: democracia. Compreendi a princípio que democracia quer dizer "um país de loucos onde todos se surram mutuamente". 

Mas, explicou-me o Senhor...: democracia é a repartição por igual de tudo o que há numa sociedade. E como ali só havia injustiça todos a ela tinham direito. Não é bom assim?, perguntou, e tive que concordar, pois sou homem dado ao jogo e às trapaças e concluí que a trapaça é parte da democracia. Assim descobri que sempre sempre fora, sem saber, um democrata. E disso quis imediatamente tirar proveito, metendo o relho no lombo do Senhor... .

Mas isso foi deplorável erro que custou-me muito caro. Veja só: muni-me de látego pesado e ataquei o Senhor..., sem saber que ele era isento da democracia. Após as dez primeiras vergastadas e berrando o Senhor como um boi, fui subjugado por grande número de janízaros chicoteadores e atirado a masmorra onde está presa uma congregação de saltimbancos, falsários e mal-faladores, ladrões da pior espécie e bandidos de grande ordem, vagabundos de envergadura e malsãos incorrigíveis, biltres malfazejos e sicários a soldo baixo prontos a cumprir com qualquer maléfico mister. 

Tentei fugir e não pude. Assim, encontro-me desesperado e em miserável situação.
Mas espero escapar com vida. Assim que puder voltarei a escrever minhas lamentáveis cartas, talvez com pedido de socorro.

Com abraço deste que muito vos respeita,
Alberany, o abominável

(Na continuação: de como Aberany, o abominável, encontra um cirurgião que o salva e a toda aquela grei com ele presa. Não perca).


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