quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Alberany, o abominável, prepara-se para ir à Terra Brasílis e explorar os desvalidos

Londres, 31 de maio de 1730

A quem segue minhas diatribres e acompanha as minhas vilanias conto o que vem abaixo.

Estou atirado a odiosa prisão no país de On, onde cumpro sentença por haver chicoteado o Rei e senhor deste lemantável povo. A meu lado homens da pior espécie se movimentam como sombras e têm terríveis intentos. Como são larápios, salteadores, desocupados e mecenas das mais horríveis artes, deles não tento me aproveitar, pois sei que serei atacado imediatamente e sem dúvida não escaparei com vida.

A masmorra é cova profunda, mal iluminada e fria, e ratos percorrem o seu chão. De repente soam clarins e guardas invadem o ambiente sórdido. E se anuncia que grande autoridade, um cientista e cirurgião, proclamam, vem nos ver e nos observar. Percebo que estou em vias de ser cobaia de horripilante experiênca; senão, qual o motivo de ter vindo aqui um cientista, mesmo que louco e desmiolado?

Logo descubro quem é a ígnóbil criatura: descendo as escadarias da masmorra, passo a passo, todo vestido de branco vejo um asno, um burro, o médico particular do rei de On. Aquela visão me torna tenso. O cientista traz à cara um par de óculos enormes, lentes grossas e muito verdes. As lentes ampliam ainda mais os olhos do animal e percebo que estou diante de um monstro que nem os meus mais atrozes pensamentos jamais haviam imaginado.  

Ele examina um a um os infelizes e os vai dividindo em dois grupos. Falando alto, diz aos guardas: estes para a primeira iniciativa, aqueles para a segunda iniciativa. Isso desperta em mim meus mais poderosos sentimentos de medo e percebo que estou diante de uma tragédia prestes a se realizar.

Reunindo minha coragem, que devo dizer é muito pouca, acerco-me da asinina autoridade e a indago a respeito de tudo aquilo. Cerimonioso, o burro me explica que trata-se do seguinte: os do lado direito serão levados a seu laboratório para que sejam submetidos à primeira iniciativa, que consiste em retirar suas cabeças que serão colocadas em cavalos de carga. Isso para que, com cérebros humanos, tais bestas possam melhor cumprir com seus finais: levar pesadíssimas mercadorias, descobrindo os melhores caminhos.

E a segunda iniciativa?, quis saber. Muito simples, redarguiu: serão todos vendidos a tribos de canibais, viventes em territórios longínquos e hostis. É que tais entes desenvolveram a tal seu ponto o paladar que agora somente consomem carne importada, enfatizou.

Bondoso, pergunda qual dos dois grupos gostaria de escolher e compor para cumprir meu triste fado. Minha mente ladina e perigosa logo encontra uma saída. Pergunto: não poderia eu escolher uma terceira opção?

Claro, podia sim, disse-me o burro. Pungente felicidade apoderou-se de minha alma tenebrosa. Estou pronto, respondi. O que será? Respondeu: serás levado à Terra Brasílis. E lá é bom? Garantiu que sim e anunciou: lá existe uma verdadeira democracia.

Caí no mais tormentoso espanto. A democracia era a coisa que mais me apavorava. Ainda tinha na minha sofrida mente a experiência de democracia da terra de On, onde todos se chicoteavam, compartilhando sofrimentos. Lá era essa a democracia: uns batendo nos outros, ou melhor: uns tendo o direito de bater nos outros e sendo infelizes por igual.

Diante disso, gritei que não, que nada queria com a democracia. Mas o burro esclareceu-me com seu grande saber. Disse que há muitas democracias e que cada democracia depende de quem esteja no comando. Como assim?, quis saber. E o monstro detalhou: na Terra Brasílis a democracia é assim: uns podem bater nos outros e outros não podem bater em uns.

Minhas intenções maléficas sintonizaram-se bem com aquela forma de democracia e vi que disso bem poderia tirar partido. Aceitei de pronto: quero ir para a tal Terra. Lá poderei ser um chicoteador, sem que tenha o merecido troco? Claro, foi a resposta. Então, vou. E aquela grande autoridade já me libertou, encaminhando-me a navio prestes a zarpar.

Devo dizer que estou empilhado em meio a congregação de péssimos indivíduos, todos desejosos de seguir à Terra Brasílis. Têm tão tormentosos propósitos e tão vergonhosos planos que aqui não haveria como os relacionar; mas algo sei: tudo está de acordo com o que penso, que pretendo unir-se àquele congresso de facínoras e muito lucrar na Terra Brasílis.

Devo parar agora. Sou grato pela leitura desta carta, mas confesso: temo que sejais um malfeitor, pois natural de tão distante e horrífera nação. Assim, temo que tão logo desembarque me ponhais a ferros e me vendais como escravo, obtendo com isso um bom dinheiro; segundo o que dizem isto é comum em vossas paragens.

Mas vou sem medo. Tenho cá as minhas artimanhas e, quem sabe, possamos a nos pôr sócios, explorar os desvalidos e viver à larga e sem controle.

Esperai-me, que vos encontrarei.

Saudações deste patife mui,
Alberany, o abominável

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