domingo, 11 de dezembro de 2022

Maria Saberé: mesmo sendo
presa nunca perdeu uma briga

Ano de 1974. Tempo do meu ingresso no jornalismo. Diário de Natal. Repórter e redator do noticiário de polícia. Tempo dos grandes jornalistas Pepe dos Santos e Alexis Gurgel – também eles da página de crimes, que abria para mim as portas de vaivém da redação, jornal dirigido pelo lendário Luís Maria Alves. 

Entrei entrando, sem saber redigir uma linha. Aprendi em meio às bobinas de papel da impressora – aninhadas na redação, cara a cara com a turma que batucava firme o teclado das máquinas de escrever. Aprendi o jornalismo na redação e junto a policiais e escreventes de polícia, criminosos de todos os tipos, malandros de todos os matizes. 

E foi assim, como foca do Diário, que conheci Maria Saberé: bêbada e desordeira, espécime perfeito de toda uma fauna noturna que habitava com fervor baderneiro e intensidade alcoólica dois sinceros bairros boêmios: Ribeira e Rocas. Cachaça pura; radiopatrulha guinchando pneus quando o pau cantava na madrugada. 

Maria era destemida, abusada, atrevida, encrenqueira; metia o pé e entrava em qualquer bar, não enjeitava meter-se numa briga e bebia como qualquer um dos marmanjos que às vezes enfrentava no tapa.

E foi exatamente por causa de uma de suas arruaças que ela foi levada a um distrito policial das Rocas. Prisão correcional, como se dizia na época, era coisa comum para ela. Fazia parte, entende?  

Cheguei ao distrito lá pelas nove da manhã e procurei saber das novidades. “Tem não”, disse-me o comissário. Naquele tempo comissário era o segundo depois do delegado. Não sei se ainda é assim.
“Tem não?”, insisti. E ele: “Não.” 

Eu já ia saindo quando o comissário me diz: “Mas você pode falar com Maria Saberé. Ela abriu um pau danado ontem num bar e está lá dentro agora.” 

Eu disse “Opa! Vamo lá!” Era pegar ou largar. Explico: eu era um foca com três meses de jornal, não tinha fontes, não sabia nada de nada de jornalismo e meu dia começava péssimo: não havia qualquer acontecimento a ser noticiado.

 Assim, o anúncio de que havia uma desordeira nas áreas era a certeza de captar pelo menos uma notinha para a coluna Ronda, que eu fazia a partir de acontecimentos menores, fatos que não tinham a importância de um assalto ou homicídio.

Fui levado à cela onde Maria estava. Ela encarou-me com os olhos vermelhos de ressaca e disse: “Veio fazer o que aqui? Também vai ser recolhido? Brigou aonde? Você tem cara de quem merece entrar em cana.” Ante tão desanimadora recepção adotei uma postura amigável: “Vim lhe ver. Sou jornalista e quero saber como você foi presa. Vamo conversar?”

Para meu espanto ela aceitou imediatamente. Eu supunha que sabendo de minha condição de repórter ela fosse botar dificuldade. Afinal, seu nome ia sair na página mais barra-pesada do jornalismo norte-rio-grandense: a página policial do então todo poderoso Dário de Natal.

Mas ela não deu trabalho e falou sobre a prisão. Disse que “tinha se metido no meio de um azar”, empurrado o murro na cara de uma dona que ela não sabia nem quem era, levado rasteira de um estivador e dado uma tremenda tamboretada na cabeça de um bebo. “É pouco ou quer mais?"

Foi uma entrevista besta, simples, na verdade um acontecimento repetitivo e típico de sua condição de desgraçada e pobre. Eu a olhava e via uma mulher jovem – coisa de vinte e cinco anos –, mas já alquebrada, cabelos desgrenhados, perdida em meio a uma vida de miséria e dor, sofrimento e baderna, a falsa alegria de uma noite de bebedeira barata e violenta. 

Levantei-me daquela que seria apenas a minha primeira entrevista com Maria Saberé e já ia saindo quando ela me disse: “Me faça um favor. Quando eu morrer, quero que você faça uma matéria bem bonita. Diga na manchete que Maria Saberé, mesmo sendo presa, nunca perdeu uma briga.”

Não sei quando ela morreu. Mas foi por isso mesmo que coloquei nessa crônica o título que ela pediu. OK, Saberé, cumprido o nosso trato. 




  

 

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