segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Uma viagem a Bogotá e a fotografia como paixão em Cartier-Bresson
Emanoel Barreto

Viajo amanhã a Bogotá, onde participo do 10º Congressso da Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación, na Pontificia Universidad Javeriana. Apresentarei o trabalho intitulado "A fotografia como paixão em Cartier-Bresson", que aborda o olhar do fotógrafo francês considerado um dos maiores nomes do século passado.

O trabalho de Bresson é uma espécie de conjura entre cerebralismo e arrebatamento; o fotógrafo à espreita do momento decisivo, ator sem papel no grande teatro do mundo. Mas participando sem falar, é ator de máxima importância, ao congelar em foto um instante que pode ser a visão epifânica de um gesto poético ou a captação da condição humana na dor, na grandeza, na miséria.

É sobre isso que vou falar. Enviei ao congresso texto de 15 laudas tratando do assunto e o fiz como quem produz uma crônica. Dexei o repórter falar, mesmo cumprindo o que determinam as regras da academia.

Percorri com os olhos e o olhar uma parte da trajetória de Bresson ( http://www.magnumphotos.com/Archive/C.aspx?VP3=ViewBox&ALID=2TYRYD1D518O&IT=ThumbImage01_VForm&CT=Album ) e da internet consegui imagens preciosas.

Pode-se perceber o poder e a força da fotografia como arte e como exercício de um jornalismo incisivo e captor de momentos da história. Bresson, que antes de ser fotógrafo fora pintor, tinha noção exata dos planos e do equilíbrio dos volumes no texto fotográfico.

Dizia que a foto de uma certa maneira era uma forma de pintura. E tinha razão. Pois então é isso: vou a Bogotá também, já que surgiu a oportunidade, para ver como funciona um país em guerra; como age o povo, o que se diz nas ruas, como fervilham os fatos. Vou a uma universidade mas vou também ser repórter. Mando notícias de lá.

Leia abaixo um trecho do trabalho que apresentarei.
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A mulher seminua num Éden suarento

Na fotografia de Bresson o mundo é rápido e cada segundo conta. O tempo tem locução própria, e o espaço e seus habitantes com ele dialogam. Resta saber o que dizem. E o que dizem é transcrito na imagem. A vida e todas as suas digressões.
[...]
 Surge então uma outra forma do presente. O presente da vida e as suas divagações, esse o mister de Bresson: fazê-los co-incidir na foto. E coincidem na colagem pictórica. Pode ser na imagem da feirante seminua do mercado de Bali. Seios suntuosos – que adornam nudez primal, despojada e majestosamente banal aos olhares da feira – contrastam com descarnado ancião que lhe é perto.

O torso ossudo próximo ao luxuriante-corpo-fêmeo. Na mulher, à cabeça, um turbante branco é enfeite ligeiro, contraponto de alvura à pele escura. Mas o cesto na cabeça não é adorno, é fardo. Temos dois seres básicos em seu estado-de-natureza infausto. Uma espécie de inocência tosca os une, a guiar a naturalização de sua tragédia. Escassez e viço convivendo nos corpos de tais inocentes.

Tão humanos, tão singelamente espécimes, tão ingenuamente mansos; dois exemplares, dois viventes, dois de muitos viventes de um éden suarento, ignaro e tórrido mostrado no universo cifrado da foto, feita em 1949. Podem-se intuir os gritos do mercado, a vida plebe e rústica, o girar dum cotidiano eterno. Cotidiano inculto, ironia que esculpiu improvável fêmea exuberante enquanto desbastava a vida de outro, o infeliz mirrado. Detalhe: o olhar da moça, delicado, se espicha numa meia-volta do corpo silvestre, olhar virado para o lado e para baixo. Ela vê além, olha para fora do que está no enquadramento, portanto fora da vista do fotógrafo e, depois, do expectador da foto. Aí a composição perfeita, mistério e feitiço da colagem pictórica.

Bresson entrecruza dois, três acontecimentos: a moça e o esquálido; a moça, o esquálido e o que não é possível ver, mesmo supondo. Ela olha a algum ponto. Olha a alguém? Sem perguntas. O importante é o olhar, não o olhado. Bresson captou candura no que era agreste.

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