Combater o bom combate ou de como ser elefante e homem plenamente
Emanoel Barreto
Como já disse uma vez neste jornal sou tipógrafo de profissão. Aprendi o ofício em 1444 pelas mãos do mestre Johann Gensfleich zum Gutenberg quando este, em sua genialidade artífice, juntou todas as técnicas então conhecidas, criou os tipos móveis e fundou isso a que chamais imprensa. Tinha eu então 15 anos. E ainda hoje sigo os ditames do mestre: produzo os meus tipos com a mistura de chumbo, estanho e antimônio; meticulosa e dedicadamente. Cada um na medida exata para a criação de caracteres os mais belos, ilustres e bem postos.
A história que vos vou relatar ocorreu no ano da graça de 1784, já então eu bem velho, em Paris. Foi assim: certa noite fui procurado por um elegante e bem elevado senhor. Homem idoso, bem vestido, porte alto e sobranceiro, de maneiras afáveis; um cavalheiro. Apeou-se de sua carruagem e adentrou à minha oficina onde também moro.
Dado o horário supus que se tratasse de algo de muita relevância. Tirando as luvas, a nobre e elegante figura se apresentou. Passando as mãos na basta cabeleira alvíssima e pelos gestos refinados, logo reparei que tratava-se de um elefante. Desejei-lhe boa noite e perguntei no que poderia servi-lo, sendo eu apenas um tipógrafo.
Explicou-me ser muito velho, o que era absolutamente desnecessário, e pediu-me ajuda. Revelou que havia há alguns meses sido procurado pela Morte em encontro formal, quando esta lhe havia anunciado o seu fim.
Perguntei-me a razão daquela inusitada conversa, não sem antes haver-lhe anunciado que até então jamais havia sido procurado por aquela dama, muito embora já a tivesse visto visitando amigos em encontros aos quais testemunhei.
A Morte, para quem não sabe, vem sempre acompanhada pela Dor, Solidão, Frieza, Injustiça, Doença. São suas aias fiéis e dedicadas. Todas elegantes; vestidas, para espanto meu, com ricos indumentos, roupas solares, cores delicadas como uma manhã nascente. A Morte sorri, sorri sempre nesses encontros, e se explica como necessária e guardiã de que o Homem cumpra com sua sina de ser homem.
Num desses encontros a que presenciei, disse ao elefante, perguntei quando seria eu finado e ela me disse que ainda não se havia decidido a respeito. Mas confortou-me que não ficarei para sempre. Mas, voltando ao meu visitante, eis o que se segue: contou-me que os elefantes têm um lugar secreto, um cemitério aonde vão sempre que se lhes chega o momento.
Prosseguiu, dizendo que tal cemitério é âmbito sagrado, devendo ali repousar aqueles grandes despojos e suas magníficas presas de marfim. Um repouso eterno e impenetrável a olhos malfazejos. Afinal explicou o motivo de sua vinda: tivera iformação de que um homem havia descoberto a existência da necrópole e preprava-se para infausta e malíssima invasão, a fim de apoderar-se do marfim e com isso fazer fortuna.
Assim, completou, pedia que eu, como tipógrafo, o acompanhasse a tal lugar, onde pretendia defrontar o sacrílego infame e impedir que perpetrasse o indigno intento. Perguntou se eu o acompanharia, mesmo sendo noite e longa a viagem. Queria que um tipógrafo registrasse aquele encontro e o contasse depois. Não pensei um segundo e aceitei.
Antes de sairmos quis saber quais as armas para o duelo; ele respondeu: as convencionais: florete e pistolas, à escolha do agressor. Mas, como supunha que se tratasse de elemento vil, não um cavalheiro, levava também facas para bater-se em encontro desonroso e mesquinho com o miserável.
Pecebi que o meu amigo - àquela hora já o considerava um amigo-, tinha lágrimas nos seus grandes olhos por obrigar-se a combate tão desgraçado, com armas tão torpes: as facas, típicas de manhosos e ignóbeis homens de tavolagem.
Aprestei-me a sair. Pedi licença e fui a meu quarto onde apoderei-me de uma pistola que escondi em meu casaco. Jamais deixaria o elefante ser humilhado e abatido pelo canalha. Nesse instante evoquei a Morte a lhe pedir conselhos. Ela não veio. Mandou-me, em seu lugar, a Dor, a Frieza e a Solidão. Belíssimas, decotes profundos, elas me olharam com olhar de indiferença e me disseram que aquele momento deveria ser vivido em toda a sua plenitude. Quer dizer: em total sucumbência, obediente sucumbência ao que seja ser homem. E se foram.
Nós também partimos. A confortável carruagem era tirada por três parelhas de poderosos cavalos, animais enormes, bestas de formidável força e grande impulso. E seguimos. Varamos a noite e seu vento uivante e frio. Prosseguimos de dia e mais uma noite e outra e outra e outra.
Até que afinal chegamos ao santuário. Lugar esplêndido, apesar de ser um mortuário. Grandes carcaças se espalhavam em sua grandiosa condição de testemunho do que um dia fora vida. Uma clareira selvática, cercada de vegetação de verdes de todos os matizes. Descemos da carruagem e esperamos.
De repente o infame apareceu. Vinha só, montado em enorme carroça onde pretendia levar o seu butim. Quando se preparava para iniciar a desprezível tarefa foi atalhado pelo elefante. Digno, aquele homem dirigiu-se ao salteador e mandou que parasse. Este reagiu dizendo que nem as forças do Alto o deteriam.
Tirando a casaca o elefante o desafiou: o biltre jamais levaria adiante seus molestos intentos, asseverou. E mandou que escolhesse armas. O falsário não se fez de rogado. Mas não escolheu armas: tinha já pronta na mão o objeto indigno: o combate seria travado a faca, sem honra ou regras.
Temi pelo destino do meu amigo. Homem velho, o elefante poderia ser estraçalhado pelo jovem carniceiro, perdendo assim de ter uma morte digna, a morte que merece todo elefante.
O cavalheiro então chamou o cocheiro e lhe pediu idêntido armamento.
Encaminhou-se ao centro da clareira onde já o esperava o velhaco e o confrontou. Notava-se claramente a assimetria entre os desafiantes: meu amigo caminhava pesadamente, movia-se com dificuldade, enquanto o malfazejo o cercava girando à sua volta, jogando a arma de uma mão para a outra.
Então veio o primeiro golpe. Atingido no ombro o elefante rilhou os dentes e aguentou a brutalidade. O sangue quente e vivo descia da ferida, mas aquele velho homem não se dobrava. E veio o segundo golpe, o terceiro golpe e o quarto golpe.
Semicerrei os olhos e tirei do coldre a pistola. Não, jamais permitria aquela indignidade. Sendo eu também muito velho, pedi forças à Morte para que me ajudasse naquele instante. E então ela me ajudou. Fez renascer minhas forças, meu sangue tornou-se ácido e cruel. Uma crueldade boa e intensa, a crueldade da imensidão que precisamos ter ao afrontar o indigno e o mau pelejador.
Minha mão puxou a pistola do coldre num movimento semicircular, vindo do quadril até o ponto de mira. Mas, quando fixei na vista a testa do invasor deu-se o milagre: o elefante, reunindo suas últimas forças e lavado de sangue e hombridade, estirou-se à frente e cravou certeiramente a faca no pescoço do criminal, que caiu de borco em meio a um mar vermelho e borbulhante de sangue ruim.
Num impulso de pólvora atirei para cima e dei um grito rouco e longo que estremeceu todo o meu corpo. Lágrimas corriam dos velhos olhos cansados. Eu agora era novamente apenas um velho. Corri a amparar o meu amigo, aquele homem digno, aquele elefante insuperável. Então a Morte se aproximou. Mas não vinha em companhia de suas aias costumeiras; agora trazia a seu lado a Luz, a Imensidão, a Flora e a mais bela de suas novas companheiras: a Paz.
Meu amigo caiu ao solo e a Morte, a Luz, a Imensidão, a Flora e a Paz o abraçaram em seu regaço enquanto ele ainda respirava. A seguir deu-se uma epifânica transformação: aquele grande corpo humano aos poucos foi se dissolvendo e meu amigo assumiu a força de um monumental, grandioso e belo elefante.
Já não mais tinha os sofridos ferimentos. Estava inteiro, intacto e esplendente. Duas grandes presas de puríssimo marfim refulgiam de sua boca. Seus enormes olhos miraram-me a mim e ele fez uma solene e profunda inclinação com a cabeça. Então, ajuntou todo o corpo, deitou-se e morreu. Recerreguei a pistola, dei outro tiro para o ar e gritei meu grito rouco e primal. Meu ser todo tremia. Toquei o corpo daquele magnífico homem e voltei à carruagem que me tornou a Paris.
Jamais esqueci aqueles momentos que agora compartilho com você. Ainda hoje estou vivo e sempre pergunto à Morte quando ela me virá buscar. Ela sempre diz que ainda não chegou a hora. Mas sempre me promete que não me faltará, como jamais faltou a elefante algum.
Escrevi a história do meu amigo e agora publico nesse estranho jornal que não é de papel, para leitores que são bem mais jovens que eu, mesmo que sejam já anciães. Prometo que voltarei a contar outras histórias. Afinal, como sou muito velho, tenho sempre algo a compartir com algum elefante que queira desfrutar deste meu ofício de tipógrafo.
Voltaremos a nos falar meu caro elefante.
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