'O delegado sou eu!'
Por Emanoel Barreto
Da minha casa eu o via seguir ladeira abaixo, Rua Princesa Isabel,
centro de Natal. Ele passava na calçada do outro lado da rua e seus gestos hoje
me lembram um Carlitos torto e anônimo, um brasileiro pobre que se dizia
autoridade.
Bem que eu poderia tê-lo presenteado (meninos, se você não sabe, podem
tudo) com uma linda viatura policial que naqueles tempos eram chamadas de
"tintureiras", para ele fazer valer sua disposição de Quixote e
prender todo mundo. A tintureira seria toda pintada em preto e branco e
Delegado poderia cumprir mandados, fazer flagrantes, capturar os maus.
E mais: eu poderia pedir ajuda aos meus amigos Zorro e Tonto, Billy the
Kid, Kit Carson, Roy Rogers, o Fantasma, Búfalo Bill, Águia Negra, Falcão
Negro, Daniel Boone, Dom Chicote, Cavaleiro Negro, Kid Colt e, claro, Jerônimo,
Aninha e Moleque Saci. Se a coisa ficasse muito feia poderia chamar o Rei Artur
e os cavaleiros da Távola Redonda e mais: El Cid, o imperador Carlos Magno e os
Doze Pares de França. Os mosqueteiros Athos, Porthos, Aramis e d'Artagnan
também poderiam vir.
Eles eram invencíveis, eram meus amigos e jamais se negariam a ajudar a
mim e ao Delegado. Eu daria a ele um dos meus revólveres de plástico, quem sabe
até mesmo um de metal, o mais bonito, o que disparava espoletas.
Com essas armas eu mesmo prendi muitos bandidos que habitavam
esconderijos imaginários somente conhecidos por mim. Eu tinha até uma estrela
de xerife ganha numa promoção da Toddy, premiação chamada Patrulheiros Toddy. Eu
era um Patrulheiro Toddy e bem poderia ter ajudado ao Delegado. Mas não fiz
nada. Não chamei os caubóis, nem os grandes espadachins, não lhe dei a
tintureira, não lhe dei meu revólver, não saí galopando a seu lado rua
abaixo.
Nada, nada, nada; somente o vi passar; tão desamparado, maltrapilho e
tão bêbado, um pobre brasileiro e se perder na pesada ladeira da Princesa
Isabel.
E ele se dizia delegado. Ele só queria respeito. Porque tinha a
autoridade de ser povo, pobre e cambaleante.
Após aquele dia nunca mais reencontrei o Delegado. E, acho, somente hoje
descobri que ele também era meu amigo, e tão corajoso e firme como Jerônimo ou
Zorro. Afinal, eu e o Delegado vivíamos em mundos próximos, universos
imaginários, e queríamos ajudar, prendendo bandidos. Naquele tempo, além de
querer prender bandidos, eu tinha outra paixão: queria ser arqueólogo, pensava
em ir ao Egito e fazer grandes descobertas. Não fui.
Hoje penso no meu amigo Delegado, reduzido a uma réstia de lembranças. E
agora me vem, não sem um certo temor e uma fisgada de angústia: acho que quando
ergo minha voz nestes textos de internet também estou descendo alguma ladeira e
grito como o louco sublime: "O delegado sou eu! O delegado sou eu! O
delegado sou eu!"
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