domingo, 27 de março de 2011

Um crime inimitável

Caro leitor,

Informo que hoje estou no ano de 1702 e que em plena chuva desembarca de seu landô e se dirige à minha casa um grand signeur. Vestido como os de sua classe, protege-se da pesada água com uma capa curta e se encaminha a mim.
Não o conheço, mas, ao entrar, me informa que fui altamente recomendado por amigo comum para que comigo pudesse partilhar grandes plantos e altos intentos. Coloco-me à disposição e ele me diz: "Aqui vim para que me ajude a tramar um crime inimitável."

Manifestei minha total surpresa e alguma indignação, pois não sou homem de armas, duelista de pistolas ou espadachim da nobre arte do florete, sabre ou espada. Admiro tais habilidades enquanto prática e destreza, mas não enveredo pelos seus resultados, sempre trágicos e lacrimosos. Então, pergunto: "Por que a minha escolha? Sou, sempre fui, apenas um tipógrafo, arte que aprendi com o mestre de Mogúncia por volta de 1439 e até hoje a pratico, esmerando-me na detalhada e delicada construção de tipos preciosos. Apenas isso."

Cavalheirescamente insistente, explica-me o grande senhor: "Não vim aqui para que o crime inimitável seja necessariamente perpetrado, mas para que seja planejado, articulado, estudado; se possível, cientificamente. E que tais planos e conjecturas sejam de tal forma elevados, minuciosos, sutis e corteses que o vitimado, ao morrer, venha a saber que está participando de uma obra d'arte, encontrando aí grande honra e motivos para ser agraciado com tal morte. Sim, meu caro, porque o crime inimitável deve ser levado a efeito sobre alguém de fina sensibilidade, alma estrangeira às vulgaridades e espírito arguto e nobre, atento às artes mais altas, matizes sutis e sons requintados. Refiro, entenda, a um regicídio." 

Ante tal observação pensei estar às voltas com algum magnífico demente, pois, além de me propor um crime, queria elevá-lo à condição perigosíssima de matar um rei. Isso, argumentei, significaria, aí sim, morte certa ao regicida. Mas ele não se deu por vencido. E falou do grande salão onde tal intento seria elegantemente perpetrado, à frente de corte engalanada, com vivas ao monarca, brindes e champanhe. 

Então, contou, o regicida entraria naquele magnificente e ilustre ambiente. Ele próprio um nobre, senhor de título de herdade ancestral, emérito em combates singulares de sabre florete ou espada, amante de damas dulcíssimas e secretas, cujas belezas mais fêmeas e íntimas somente a ele pertenceriam.
E então, caminhando seus distintos sapatos, o regicida iria até o rei e, sem que ninguém, ninguém percebesse, cravaria profundamente, no coração real, dileto, argentino e penetrante punhal. E o faria de tal maneira, e com tal eloquência de modos magistrais e cuidadosos,  que o rei, elegantemente, tombaria em cadeira como se nela estivesse sentando. E certamente, aos olhos dos convivas, daria a impressão de estar cansado da adulação e ademanes, reverências e mesuras que só a falsidade dos aristocratas consegue lucubrar e praticar com gênio assombroso de mentira combinada e ritual. Deixando-se assim, o rei, aparentemente, recostar-se em repouso momentâneo. 

"E então, meu caro, gostou do meu plano? É ou não é um crime inimitável?", disse. E completou: "O rei fecharia de forma sublime as pálpebras, após haver lançado olhar de gratidão ao artista que tão distintamente o havia levado aos braços da Caronte." 

E disse mais: "Não se trata efetivamente de obra de arte?! "E acrescentou: "Depois disso, o regicida - regicida é uma espécie de título nobiliárquico, entende?, disse-me ele - sairia calmamente tocando uma requinta, encantando assim a todos os presentes, que deslumbrados o veriam como a um artista que pusera o rei a dormir e agora se afastava docemente, como suave fauno em busca de ninfa sequiosa de seus prazeres de homem, sobre ela e dentro dela exercidos."

Afinal, persistiu, "é uma grande arte a que pretendo realizar, concorda?" Absolutamente perplexo, convidei-o a tomar algo forte a fim de que, se possível, pudesse refazer seus planos. Chamei a um criado e mandei que trouxesse bebida escalcande, bebida vinda do Brasil, uma terra distante onde os colonizadores fornicam mulheres conhecidas de índias, bebida chamada de cachaça. Esperei, com isso, trazê-lo de volta à realidade, abandonando tão esquisitos e danosos planos. 

Dois tragos e ele, para minha alegria, disse-me, então, altissonante: "Esta bebida ferve o sangue como um tiro de pistolete. E sendo assim, como estou sob as efluências de tal beberagem bárbara, abandono meus planos iniciais."

A atitude deu-me a sensação de que havia vencido meu demencial e sofisticado interlucutor e sua extravagante intentona. Debalde, como logo vi. Para minha surpresa, bradou: "E como sinto ebulir no ser que habita o meu corpo ingente necessidade de agir, eu o farei agora e agora mesmo!" 

Ato contínuo sacou de seu casaco portentosa e poderosa pistola e a descarregou sobre o mordomo que nos havia acabado de servir a cachaça. E o pobre homem caiu, morto, a meus pés.

Isso posto, meu estranho visitante fez-me profunda reverência, tomou mais um trago, correu para o seu landô e desapareceu para sempre. Fora, realmente, um crime inimitável.

 

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