quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

 Meu encontro com Yasser Arafat; e as mulheres que choravam a seus pés

Ao ler hoje no Estadão que o presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Mahmoud Abbas, estará presente à posse de Dilma, lembrei-me do dia em que estive frente a frente com o lendário Yasser Arafat, então lider da Organização para a Libertação da Palestina-OLP, hoje ANP. O ano era 1995; dia e mês não lembro. O presidente era Fernando Henrique Cardoso e Arafat estava em Brasília para com ele conferenciar. 
http://electronicintifada.net/v2/article3288.shtml

Pois bem: eu era secretário de Imprensa do prefeito Aldo Tinoco e fora com ele a Brasília. Aldo ia tratar de liberar recursos para o seu bem sucedido projeto de saneamento e drenagem de boa parte da cidade, obra que a história, pelo menos até hoje, jamais fez justiça.

Estávamos no mesmo hotel em que se encontrava o empresário Sami Elali. Então, num desses acasos da vida, nos encontramos com ele no restaurante do hotel e Sami nos convidou para, dia seguinte, comparecermos a um café-da-manhã a ser oferecido a Arafat num outro hotel, homenagem da comunidade árabe.

No outro dia tomamos um taxi e nos dirigimos ao encontro de Sami. Eram mais ou menos sete horas. Percorremos o esplendor monumental de Brasília e quinze minutos depois estávamos hotel onde se daria a homenagem. Ao descer do taxi notamos que faltava algo essencial: um convite, um papel, um bilhete de recomendação, qualquer coisa escrita que garantisse à segurança que éramos bem-vindos. Fôramos convidados pela proverbial elegância e cavalheirismo de Sami, mas disso a segurança de Arafat não sabia. E o ex-guerrilheiro era um dos homens mais bem protegidos do mundo, como é fácil de imaginar.

E agora?, dissemos um para o outro. Olhamos para os lados, nada de Sami. Olhamos mais uma vez, o canto mais limpo: Sami, simplesmente não estava ao alcance da vista. Falha nossa: nem eu nem Aldo havíamos marcado um lugar próximo ao hotel, onde pudéssemos nos encontrar.

A solução foi a seguinte, caminhamos reto em direção ao grande edifício. E sempre que passávamos por alguém eu dizia "salaam aleikum", (a paz esteja convosco), fazíamos uma ligeira reverência e andávamos, passo firme e certo. Havia homens empaletozados por toda parte, nós também, e aqueles que eram grandalhões logo deixavam perceber: eram os seguranças de Arafat. 

A pequena aventura durou no máximo uns cinco minutos, mas parecia que transitávamos pelo mais longo dos dias. Afinal, se houvesse uma abordagem, se fôssemos tidos como suspeitos, se fôssemos revistados e dadas as devidas explicações,  até que Sami fosse localizado... sei não... Bem, afinal chegamos ao hotel. E quem vemos logo no saguão? Sami. Ele já se preparava para nos procurar e manifestou seu alívio com um sorriso deste tamanho.

Pouco depois subimos ao restaurante. Café-da-manhã é expressão pouca para descrever a cena: Gigantesca mesa, recoberta pelas mais finas iguarias da cozinha árabe, esperava os convidados. A decoração mourisca era um espetáculo à parte. A meu lado um empresário árabe convidou-me a experimentar um manjar. Falava português fluentemente.

A conversa seguiu animada; amenidades, diga-se de passagem, pois não seria politicamente conveniente, pelo menos da parte dele, tratar da questão palestina. Em meio aos convivas, largos como as portas de uma imponente mesquita, uns sujeitos trafegavam como sombras monumentais. Então, fez-se silêncio: uma grande fila formou-se a partir da entrada do restaurante: lado a lado, viamos a chegada da lendária figura.

Eu esperava dar de cara com um homenzarrão, alto, parrudo. Qual não foi a minha surpresa quando me deparei com alguém de estatura digamos, comum. E lá vinha Arafat com seu keffiyeh, olhinhos pretos brilhantes, a barba grisalha bem aparada e um sorriso que era como um abraço. A cada um foi apertando a mão ao mesmo tempo em que curvava elegantemente a cabeça. 

Pensava que iria tocar a mão calejada como a de um beduíno, mas ao cumprimentá-lo mais parecia estar trocando respeitos com um fidalgo. Foi um contato mínimo, mas deu para notar a força interna daquele homem ao mesmo tempo em que percebia o fascínio que provocava em seus compatriotas, o respeito, a fidelidade irrestrita que lhe era manifesta.

À época, o atual ministro da Defesa, Nelson Jobim, era ministro da Justiça da FHC e chegara pouco antes de Arafat. Encerrados os cumrimentos, o líder palestino seguiu até o fundo do salão, onde foi recepcionado pelo ministro que lhe deu as boas vindas. Em seguida, Arafat, em árabe agradeceu. Então, sem que ninguém esperasse, irrompeu no salão um momento de dor, uma espécie de pequena, mas intensa e pungente solenidade de angústia, um pedido de socorro e amparo: aos gritos, em árabe, três mulheres, vestidas de xador, percorreram o salão e atiraram-se aos pés daquele pequeno gigante.

Formou-se pequeno tumulto, os seguranças se retesaram, mas não as impediram de falar e tocar a figura icônica do líder. Cabeças baixas, quase tocando os sapatos de Arafat, elas imploravam pela vida de uma jovem, Samia, presa em Israel. Eram, suponho, a mãe e duas irmãs da prisioneira. Mãe, com certeza, uma delas era. Arafat, benévolo, curvou-se e tocou-lhes as mãos. Dava para ouvir a rápida e ininteligível conversa. Pouco depois o pequeno grupo retirou-se em meio a pesado silêncio.

A questão era o seguinte: as mulheres tinham ascendência árabe, mas eram brasileiras; e Samia, a moça aprisionada, mantivera romance com um militante da causa palestina. Adepto de ações violentas ele havia explodido uma Kombi, matando soldados israelenses. Samia acabou sendo envolvida no atentato e passou a ser tida como terrorista. Assim, as mulheres, aproveitando a oportunidade, vinham implorar para que Arafat, em sua conferência com FHC, pedisse pela libertação da jovem.

Que eu me lembre, tempos depois foram atendidas. Mas, voltando ao banquete: quando todos começaram a se servir Aldo virou-se para mim e disse: "Barreto, olhe a cara do ministro". Sim, era preciso ver o semblante quase apavorado de Jobim, por se encontrar ali, naquele imenso salão. Como um raio veio-me a ideia: o ministro deve estar temendo algum atentado a Arafat ou algo assim. Afinal, se nós havíamos passado tão facilmente pela segurança, imagine alguém com intenções, digamos, beligerantes e capacitado a atos de guerra, o que não poderia fazer.

Entendi rapidamente o que ele queria dizer, acabei de tomar o meu café, disse salaam aleikum ao empresário, que ainda estava a meu lado, e saímos de lá mais que depressa...

À tarde, conversando sobre o episódio com um jornalista, correspondente em Brasília, ele contou-me o seguinte: "Barreto, fizeram bem em sair. Sabe porquê? O pessoal da segurança, aqui, aqui anda meio apavorado com essa história de atentado: imagine você que de manhã fui acordado por um barulho estranho do lado de fora do meu apartamento. Um barulho de motor. Quando puxei a cortina da janela do meu quarto no hotel, um helicóptero de guerra estava lá, pairando, e os caras, de metralhadora em punho, olhando para mim..."

Um comentário:

Fagner França disse...

Uma das boas vantagens de ser jornalista é poder conhecer de perto essas figuras que fazem a História. Mas deve ser terrivel viver assim, com medo. Talvez nem ele mesmo achasse que iria morrer de morte natural (embora há quem diga que foi paulatinamente envenenado pelo MOssad). Parabéns pelo txt.