O jornalismo de simulacros
Por Washington Araújo em 7/9/2010
– Que é a verdade? – disse zombando Pilatos e não esperou pela resposta.
Assim começa Bacon seu Ensaio sobre a Verdade. E Pilatos tinha
mesmo razão em não esperar pela resposta: as duas correntes filosóficas
dominantes na época – o Epicurismo e a doutrina da Nova Academia –
concluíam pela não existência de uma resposta plausível para a questão.
Os séculos passaram e encontramos, resistindo ao tempo, a confissão
súplice e ardente de Santo Agostinho: "Ó Verdade, Verdade! Quanto
intimamente suspiram por ti as medulas de minha alma!" E faltam muitos
devotos de Agostinho em nossas redações.
O jornalismo brasileiro que já não era muito assertivo terminou a
semana passada vestido em forma de grande ponto de interrogação. Aquela
coisa improdutiva e entediante de investigar antes de publicar a matéria
foi solenemente escanteada. Estamos sob o império do "grande Se", sob o
domínio do "achismo" desde as coisas mais banais até às mais
importantes para o país.
Às favas com a busca da verdade, com as declarações de princípios a
invocar reiteradas vezes um simulacro de isenção, imparcialidade, busca
incessante pela objetividade jornalística. É como se as primeiras
páginas dos jornais, seus espaços nobres e vistosos se transformassem do
dia para a noite em editoriais alagadiços, transbordando de uma seção a
outra, de uma editoria a outra, irrompendo em colunas de notas
políticas, avançando por sobre o colunismo social e até mesmo
impregnando o espaço dos leitores com a opinião amplamente expostos em
cataclísmicos editoriais e repercutidos ao longo da edição. Ufa! Mas não
fica por aí: essa semana teve até o vazamento do áudio do apresentador
do Jornal da Globo, William Waack, em que mandava Dilma Rousseff calar a boca.
Atos sórdidos
Há poucos dias tratei neste Observatório da angústia irreprimida da grande mídia
pelos tais fatos novos,
algo que realmente pudesse quebrar a espinha dorsal da continuidade
política que vem se desenhando no horizonte, embalada que é por
resultados de pesquisas de opinião praticamente unânimes. E, na falta de
fatos novos, vamos de fatos velhos mesmos – afinal, se potencializa
isso e aquilo, monta-se imensa colcha de retalhos com restos de
escândalos antigos, menos antigos e relativamente novos e, quem sabe?,
teremos algo que responda prontamente ao se procurar por seu nome: "Fato
novo! Venha aqui! É pra você, fato novo!"
E assim tem sido com o chamado caso da violação do sigilo fiscal de
cinco personalidades ligadas ao PSDB, sendo uma a filha do candidato
José Serra e também um primo da mulher do candidato. Descobriu-se no
mesmo par de dias que foram quebrados os sigilos fiscais de outras 315
pessoas, incluindo-se na numerosa lista o empresário Samuel Klein, dono
da Casa Bahia e a da apresentadora da TV Globo, Ana Maria Braga.
O estardalhaço, como previsível, tem seu foco nas figuras do mundo
político. É sobre essas cinco pessoas que tanta tinta é gasta, tanto
papel é impresso, tanto espaço midiático é concedido e estendido até não
mais poder. Quanto aos demais 315, que bem podem ser cinco centenas e
meia de pessoas, a indignação não é suficiente para preencher o espaço
de nota de rodapé. Tal é a realidade com que nos defrontamos.
Os inquéritos estão todos engatinhando, mas as sentenças finais já
foram proferidas há bastante tempo pelos tribunais encastelados em
nossas principais redações de jornais, emissoras de rádio e de tevê. A
sentença que vem sendo propalada apresenta muitas variações para a não
mais que duas conclusões:
1.
Os sigilos fiscais das cinco personalidades ligadas ao PSDB foram
deliberadamente quebrados com o intuito de favorecer a campanha
presidencial de Dilma Rousseff, fazê-la avançar nas pesquisas de opinião
pública e, concomitantemente, prejudicar a postulação presidencial de
José Serra;
2.
Estes atos sórdidos e cafajestes foram adredemente pensados, planejados
e executados com conhecimento e aquiescência do comitê que coordena a
campanha governista.
Uma coisa ou outra
O que falta é a prática daquilo que atendia pelo nome de bom
jornalismo. O caso atual seguirá aos anais da crônica política
brasileira como aquele em que a grande imprensa privilegiou a cobertura
por ela mesma proferida para o caso, e seu poder imenso para relatar o
necessário e indispensável processo de investigação que caso de tal
monta continua a ensejar. E são muitos, numerosos, os fios desencapados
nas repartições da Receita Federal em Mauá e em Santo André, municípios
da grande São Paulo. Um roteiro minimamente razoável poderia ser seguido
por jornalistas não-togados para desvendar o cipoal de contradições que
o caso apresenta. Se perguntado por algum estudante de jornalismo não
hesitaria em prescrever os seguintes passos:
** Refletir sobre o caso em si. É grave? Sim, gravíssimo. E a potencialização pela grande imprensa não
seria menos grave. Não é papel da imprensa partidarizar o objeto de sua
cobertura. E no presente caso é exatamente isso o que ocorre: as
manchetes da manhã seguem direto para a propaganda política do principal
beneficiário do affair.
** Há que se retroceder na agenda
política do Brasil a setembro de 2009. Estabelecer com o distanciamento
crítico possível qual era o quadro político nacional de então: Aécio
Neves estaria descartado da indicação tucana para concorrer à
presidência da República? Se não, por que algum familiar do então
governador mineiro não teve seu sigilo fiscal violado?
** Conceder o benefício da dúvida
antes de convocar o pelotão de fuzilamento. Há que se responder
objetivamente a algumas questões elementares: e se Dilma Rousseff for
completamente inocente? E se o seu partido não tiver qualquer
participação com a violação dos sigilos? E se o assunto estiver mesmo
restrito à esfera penal e não à esfera político-eleitoral?
** Há que se refletir sobre a
ação do PSDB junto ao TSE visando cassar o registro da candidatura
governista. Tal ação demonstrou o elevado grau de belicosidade que se
busca injetar em uma campanha com tudo para ser modorrenta. Do início ao
fim. E recebeu até nome: "Ação Bala de Prata". Não fosse a firmeza
combinada com a serenidade do ministro do TSE Aldir Passarinho e
teríamos o país de pernas pro ar. Não se publicou qualquer análise
minimamente aprofundada sobre as implicações de tal investida
oposicionista.
** Há que se levantar também o
outro lado dessa história. A começar por esta singela questão: e se a
gestação do atual escândalo foi premeditada, planejado com bastante
antecedência para surgir como fato novo com poder de fogo capaz de levar
a eleição do primeiro para o segundo turno?
** Há que se buscar a motivação
da candidata governista ao desejar – ainda em setembro de 2009 –
recolher de forma ilegal, e flagrantemente criminosa, informações
contidas na declaração de renda de Verônica Serra, a filha do então
governador paulista José Serra.
** Há que se descobrir a
motivação para bisbilhotar o sigilo fiscal de Eduardo Jorge Caldas
Pereira, vice-presidente do PSDB e de outros quadros do partido. O mesmo
quando apresentadora Ana Maria Braga e o empresário Samuel Klein.
** Há que se notar que, no caso
específico da quebra do sigilo de Verônica Serra, surgiu uma procuração
falsificada da primeira à última letra e que tem como personagem central
o hoje notório contador Antonio Carlos Atella. Notícias dão conta que o
personagem carrega consigo perfil inequívoco do clássico
estelionatário. Afinal trata-se de cidadão que chegou a possuir não
apenas um CPF, mas cinco CPFs e que, sem papas na língua, pretende
vender por bom dinheiro informações sobre seu modus operandi e,
em suas palavras, "com essa estória vou me arrumar". Seria importante
levantar a vida pregressa do atilado contador, vasculhar seus
computadores, devassar sua vida profissional sempre com o devido
respaldo legal.
** Projetar o presente caso no
futuro buscando um padrão. Por exemplo, analisar sobre que ações
poderiam proteger a sociedade brasileira da ação de delinqüentes
interessados em turvar o processo eleitoral.
Uma coisa é certa: ou a imprensa se contenta em ser imprensa ou então
desiste disso e funda uma agremiação política. Diretrizes partidárias
não faltariam, a começar pela visceral defesa da liberdade de prensa, de
imprensa, de empresa. O desafio seria saber delimitar uma de outra.
(Transcrito do Observatório da Imprensa)
Nenhum comentário:
Postar um comentário