sábado, 11 de dezembro de 2010

Encontrei esta bela matéria no Estadão e compartilho (EB)

Brasília, meio século entre a utopia e as ruínas modernas

No mais extraordinário levantamento fotográfico já realizado sobre a capital do País, livro dos artistas Lina Kim e Michael Wesely reúne 1410 imagens da cidade pesquisadas em arquivos públicos e privados


Antonio Gonçalves Filho, de o Estado de S.Paulo
 
Ainda que tenha sido projetada por dois ateus, Brasília é alardeada pelos sites administrativos da capital como uma cidade de "vocação mística", nascida há 50 anos sob o signo da cristandade. Eles lembram que Dom Bosco anteviu num sonho a "terra prometida" - igualzinha como está lá, com seus dois eixos formando em ângulo reto o sinal da cruz. O sonho do fundador da congregação dos salesianos foi registrado em 1883, seis décadas depois de José Bonifácio de Andrada e Silva ter proposto a criação da capital no interior do País, sugerindo para ela o nome Brasília - embora se diga que a ideia não partiu dele, mas sim dos inconfidentes.

Seja como for, meio século de existência de um marco arquitetônico e urbanístico, patrimônio da humanidade desde 1987, é suficiente para um balanço sobre sua presença no cenário nacional e internacional. O livro Arquivo Brasília, ambicioso trabalho de catalogação e restauração de fotografias históricas da cidade feito pelos artistas Lina Kim e Michael Wesely (leia entrevista na página ao lado), lançado neste fim de semana pela Cosac Naify, é o ponto de partida ideal para uma discussão como essa. Nele, seus autores reúnem imagens raras e esquecidas em arquivos ou coleções privadas, recontando a história de Brasília sob nova perspectiva.

São mais de 1.400 fotos, em preto e branco e em cores, que registram desde as primeiras expedições do então presidente Juscelino Kubitschek à região, em 1956, até a inauguração da capital, às 16 horas do dia 21 de abril de 1960. Há também uma entrevista feita em 1995 com o arquiteto franco-carioca Lucio Costa, responsável pelo projeto urbanístico de Brasília, e textos teóricos de críticos que, distantes do tom laudatório, levantam questões um tanto incômodas, como o gigantismo de um projeto associado à política desenvolvimentista de JK para criar sua "cidade ideal". Afinal, também os grandes ditadores do passado perseguiram essa ideia. O monumental projeto de Albert Speer do Grossdeutsche Reich, o Grande Reich Alemão de Hitler, em Berlim, diz o crítico de arte Helmut Friedel no livro, também se baseava em linhas axiais. Esse princípio da ortogonalidade revelaria um desejo oculto de controle das autoridades sobre os cidadãos?

Qualquer que seja a resposta, o rigor do traçado ortogonal e a mística do sistema axial não foram capazes de conter a expansão de Brasília e acomodar o que não foi projetado por Lucio Costa e Oscar Niemeyer: a arquitetura da miséria. Empurrados para longe do eixo monumental, os candangos que ergueram a capital foram obrigados a improvisar abrigos para se proteger do sol desde os primeiros minutos de sua construção. Por causa disso, essa é também uma iconografia incômoda - mas não ideológica, garantem os autores do livro. Após uma pesquisa de três anos em arquivos oficiais e coleções privadas, realizada entre 2003 e 2006, a dupla formada por Lina Kim e Michael Wesely chegou a 4 mil imagens, restauradas a custo de sacrifício pessoal (o fotógrafo alemão chegou a leiloar fotos suas para bancar o projeto).

Mundo novo

Muitas dessas imagens foram encomendadas por Juscelino para assegurar a cobertura do andamento dos trabalhos e registrar a presença de celebridades internacionais que testemunharam a concretização da modernidade arquitetônica em pleno cerrado. O escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963), autor do profético Admirável Mundo Novo (1932), foi um deles. Ele definiu sua viagem de Ouro Preto para Brasília como "uma jornada do passado para o futuro, do acabado para o que está para começar". E o que estava para começar foi uma grande seca no Nordeste, justamente no ano de sua visita, 1958, atraindo para a capital uma leva de migrantes esfomeados. Um ano depois de Huxley passar por Brasília, a nova capital tinha 60 mil candangos acampados de forma improvisada em barracas do Exército e barracos. Já os técnicos foram instalados na Vila Planalto, ocupando casas que pareciam saídas do subúrbio americano. Nada especial, mas melhores que os alojamentos da Candangolândia.

Escalas

Enquanto os edifícios públicos eram erguidos em concreto, as casas dos trabalhadores usavam madeira tosca, criando uma situação de conflito entre o permanente e o provisório - até hoje sem solução, lembram os textos de Arquivo Brasília. O crítico e curador inglês Mark Gisbourne, a esse respeito, diz que a árdua labuta dos operários foi desconsiderada pelas autoridades, "não havendo sinais de que foram consultados sobre como imaginavam ou desejavam a nova capital". Gisbourne considera pouco civilizado o processo de construção da Brasília, acusando seus planejadores de "determinismo arquitetônico e urbanístico". A capital, segundo o crítico, "desfaz-se de parte de sua condição de cidade utópica, totalmente planejada", e mostra sua verdadeira face - a de uma cidade que busca uma articulação capenga entre modernidade e tradição - nos registros selecionados pelos autores do livro.

Eles são originários de várias fontes, a principal delas o Arquivo Público do Distrito Federal, seguido pelo arquivo Gabriel Gondim de Brasília, Instituto Moreira Salles e outras coleções.
O arquiteto Milton Braga, que não participa do livro, mas organizou outro volume igualmente importante sobre a capital, O Concurso de Brasília, também publicado pela Cosac Naify, lembra que outros sete projetos apresentados no concurso público de 1956 não separavam tão radicalmente o centro residencial dos prédios públicos.

Ao concentrar os edifícios governamentais no eixo monumental clássico-barroco, para dar visibilidade à arquitetura de Niemeyer, Lucio Costa criou uma paisagem que concorre com a natureza local - ao contrário dos outros projetos apresentados, que buscavam a vizinhança do lago Paranoá, promovendo o contato de seus habitantes com a água numa região de extrema aridez. O parceiro de Niemeyer, contudo, considerou as margens do lago (que cobre uma superfície de 40 quilômetros quadrados) para "passeios e amenidades bucólicas de toda a população urbana". Isso acabou não acontecendo. Elas foram ocupadas por clubes recreativos privados.

Braga cita o projeto do paulistano Rino Levi (1901-1965) como exemplo dessa diferença de concepção urbanística. Levi projetou uma cidade definitiva, sem grande espaço para o improviso. "Já Lucio Costa teve de se adaptar à demanda", pouco se preocupando com o que acontecia com sua população construtora. "Não é que Costa tenha errado, mas faltou a ele experiência urbanística", arremata. Faltou também bom senso para perceber que uma cidade não se faz com um só protagonista - no caso, a arquitetura de Niemeyer. Contra a dimensão monumental de seu projeto, o público vira personagem liliputiano numa terra gulliveriana. "Tem muito espaço e pouco público", observa Braga, criticando a desproporção entre as vastas áreas públicas e a população da cidade, ausente dos centros de poder e retraída pela escala monumental - além, é claro, de ser Brasília um lugar nada atraente para quem gosta de andar.

As escalas da paisagem do plano piloto, que se baseiam em dois grandes eixos viários, são também inibidoras. Embora Costa tentasse com seu eixo rodoviário ininterrupto livrar os habitantes de Brasília dos congestionamentos futuros, ele criou ao longo desse eixo o grosso dos setores residenciais e uma paisagem um tanto desoladora. Eram apenas quatro superquadras na inauguração. Hoje são mais de 120. O chão contínuo das superquadras é visto pela professora de Teoria e História da Arquitetura (PUC-RJ) Ana Luiza de Souza Nobre como integrador, a exemplo das casas americanas de subúrbio sem grades ou cercas limitadoras. "Ele é muito revolucionário e pode nos ensinar muito ainda hoje, numa época em que lutamos contra a privatização do espaço público", diz ela.

Identificação

Brasília permanece uma referência arquitetônica e urbanística, segundo a professora. "Um projeto datado, é certo, mas que pertence ao seu contexto", opina. E que contexto era esse? O livro traz um resumo da iconografia da época, porém não se vê nessas fotos nem a leveza das imagens da era da bossa nova, que garantiu ao Brasil um lugar no cenário musical internacional, nem o entusiasmo dos herdeiros do construtivismo. A modernidade já era questionada na época em que Brasília foi desenhada. Ela é o atestado de óbito da cidade funcional da carta de Atenas, manifesto urbanístico que, em 1933, dividiu as cidades por zonas (residencial, de trabalho e de lazer), levando à dependência de veículos - nada problemático nos tempos de JK, que incentivou a indústria automobilística, no entanto muito crítico nos dias de hoje.

Um aspecto que se destaca no livro é a identificação popular com os ícones de Niemeyer - que o arquiteto Guilherme Wisnik chama de "logomarcas" do arquiteto, como o peristilo do Palácio da Alvorada, que sugere ao mesmo tempo uma arcada de cabeça para baixo e a forma de uma rede, tão cara à tradição dos nordestinos. "Brasília foi pensada por Lucio Costa como uma cidade de vida pacata, um pouco bucólica, uma cidade para funcionário público", diz Wisnik, observando que o núcleo familiar é essencial, norteador desse projeto. "Quem não tem esse lastro, fica desesperado nela." Realmente, não é uma cidade para flâneurs solitários, como Paris, mas pensada para concentrações de massa. Paradoxalmente, ela representou a convergência dos ideais da vanguarda histórica dos anos 1950, responsável pelo advento da linguagem abstrata nas artes plásticas e pela emergência da bossa nova no Brasil.

Para o crítico e professor da USP Lorenzo Mammì, Brasília é a imagem de um projeto desenvolvimentista que não deu certo. Como monumento, é um clássico com todas as limitações que um clássico tem, sendo a principal delas a impossibilidade de mudar. "O caráter utópico, desmedido, de Brasília, deu um ponto de referência para um país acanhado, onde tudo era regional", diz o crítico de origem italiana, um dos grandes pensadores da arte e da arquitetura brasileira, tendo, inclusive, escrito o melhor ensaio sobre Volpi aqui publicado.

Renascença

Volpi, aliás, aparece numa foto rara de 1960, pintando os afrescos do Palácio do Itamaraty, edifício que retoma a arquitetura dos palácios renascentistas italianos (tanto que Mondadori encomendou um projeto semelhante a Niemeyer para sua editora em Milão, construído em 1968). Destacam-se no livro outros registros sobre as pinturas de Volpi (bandeiras, fachadas e uma santa) na Igreja Nossa Senhora de Fátima, o primeiro templo das superquadras, cuja construção foi concluída em 1958. Infelizmente, são as únicas imagens remanescentes dos afrescos que decoravam as paredes internas da capela, depredados no final da década de 1960.

O Itamaraty é apontado por nove entre dez críticos como o mais belo projeto de Niemeyer em Brasília. Também por isso é um dos mais fotografados. "Há um refinamento técnico em sua construção que ainda hoje é referência", observa Mammì, que não gosta da catedral projetada por Niemeyer, considerada por ele "muito retórica". De fato, ela já começa por se afastar do centro, ocupando o lado sul da Esplanada dos Ministérios e fugindo da tradição colonial, reforçando assim a separação Estado-Igreja. Mammì considera o prédio do Supremo Tribunal Federal o trabalho de maior peso do arquiteto em Brasília, toda ela uma cidade tomada por símbolos, como se fosse um sítio arqueológico hoje examinado como uma ruína moderna. O primeiro desses símbolos é o próprio plano piloto, formado pela superposição de uma cruz e um avião - a cruz simbolizando a posse do território pelo colonizador, como assumiu o urbanista Lúcio Costa, e o avião como imagem tradutora do futuro no horizonte da cidade.

O horizonte dos mortos, porém, não seguiu a solução axial do plano piloto, e sim um modelo baseado na tradição nórdica, segundo os autores do livro. O percurso do cemitério de Brasília segue em espiral a partir de um ponto central e foi assim que os parentes de Bernardo Sayão acompanharam esse primeiro morto lá enterrado, em 1959. Sayão morreu durante a construção da Rodovia Belém-Brasília e foi sepultado nesse mesmo cemitério onde está o túmulo do presidente Kubitschek.

Diplomatas

Talvez por acreditar que o projeto de Brasília seria um fiasco destinado ao cemitério, muitas embaixadas deixaram de ocupar os terrenos cedidos pelo governo JK, preferindo manter suas representações diplomáticas no Rio de Janeiro. Muitos lotes destinados às embaixadas permaneceram desocupados por vários anos. Há, no livro, registros engraçados de diplomatas desanimados sob pequenas placas que indicavam os países representados, entre eles Cuba - Fidel Castro foi um dos primeiros convidados do presidente JK, visita que desagradou aos militares. Esses, ao contrário dos diplomatas estrangeiros, encontravam vantagens na transferência da capital para longe do Rio, a principal delas se manter distante das manifestações públicas e distúrbios políticos.

A localização e o projeto de Brasília acabaram facilitando o golpe militar. Involuntariamente, no caso de Niemeyer, comunista histórico.
A imagem do primeiro cinema de Brasília que ilustra esta página (foto maior), registrada pelo fotógrafo francês Marcel Gautherot (1910-1996), traduz à perfeição o silêncio como contraponto do inferno urbano carioca. Gautherot, cujo acervo é guardado pelo Instituto Moreira Salles, foi o fotógrafo que melhor registrou a monumentalidade da arquitetura de Niemeyer. O francês passou dois anos em Brasília a convite de JK e trouxe de lá 7 mil negativos na bagagem, entres eles o impressionante registro da construção das cúpulas do plenário do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.

O artista americano Robert Smithson diria que elas já nasceram ruínas antes mesmo de serem concluídas. A utopia do projeto moderno, contudo, é aspirar ao eterno, embora o passado de Brasília se imponha em seu cinquentenário e em suas ruínas. "Nossas mais belas ruínas", conclui a professora Ana Luiza de Souza Nobre.



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