segunda-feira, 29 de novembro de 2010

De como reencontrei Moby Dick
Emanoel Barreto

Na obra Moby Dick o talentoso texto de Herman Melville diz, a respeito do personagem Quiqueg: "Parecia um homem que nunca havia bajulado nem tido credor". Quem assim pensa é Ismael, marinheiro e personagem central do livro, ao observar Quiqueg, um selvagem que vendia cabeças mumificadas nos portos do mundo, arpoador de baleias que era.

Penso bem a respeito da frase: um homem que jamais bajulou nem se curvou a credor. Ela implica, alude seu contrário: a humanidade cabisbaixa às suas construções, algumas da mais esmerada sordidez. É bom não ter dívidas com elas. Como fazia o bom Quiqueg.

Estou relendo o livro com calma, aninhando em mim uma falta de pressa que somente encontrava em meus anos verdes, quando sequer sonhava em ser jornalista mas supunha que um dia estaria nos longes da Terra escavando o chão em busca de múmias, buscando vasos etruscos ou caminhando em alguma paragem estranha e improvável. Nada disso aconteceu. Hoje, sou um ex-futuro-arqueólogo, metido com o revirar do cotidiano.

Mas, como dizia, leio com vagar, quase indolência; os olhos, ou melhor o olhar, passeando letras e palavras ao balanço suave da bondosa maté montante, que me leva de volta àquele livro e suas paisagens: faiscantes de sol marinheiro ou nubladas das brumas pardas da vida no mar. Um sonho.

Transcrevo uma pequena parte desta viagem a Moby Dick: "Por trezentas e sessenta milhas, cavalheiros, de toda a extensão do Estado de Nova York; através de muitas cidades populosas e aldeias ultraflorescentes; através dos pântanos compridos, sombrios, sem habitantes, e de campos opulentos e cultivados, sem rivais por sua fertilidade; por salões de bilhar e bares; através do santo dos santos das grandes florestas; sobre arcos romanos acima de rios indígenas; por sol e por sombra; por corações felizes ou partidos; através do Mohawk; e, especialmente, por série de capelas brancas, cujos pináculos se erguem quase como pedras militares - flui uma contínua corrente de vida venezianamente corrupta e amiúde sem lei". Precioso, não?

Navego aos poucos, supero ventos e calmarias. Reencontro, por assim dizer, velhos amigos que andavam a percorrer as coisas e paragens escondidas nos portos, remansos, baías e golfos de um mundo perdido.
Releio Moby Dick como um jovem grumete, quem sabe um ágil gajeiro a administrar velas, suas vergas e aparelhos. Reingresso ao livro como quem chega a porto estrangeiro, em tempos bucaneiros, à busca de emprego na equipagem que já se apresta, aventureiro em intento de horizonte que está perdido num mapa que, sei, existe em mim, mas nunca, nunca mais, poderá ser palmilhado porque fugiu para o estuário largo e inalcançável das lembranças de um menino que passou.

Ele me acena e diz "venha". Eu tento e já não posso ir.

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