Um belo e análitico texto que encontro na revista Aliás, do Estadão:
Tiririca se escreve com...
LILIA MORITZ SCHWARCZ
Se o tema do momento é o segundo turno, ninguém parece disposto a abrir mão de comentar os resultados “escandalosos” do primeiro, como o “crime de falsidade ideológica” pelo qual está sendo acusado o humorista Tiririca. Num país conhecido por seu imenso colégio eleitoral, de 135.800.433 votantes, ele se sagrou vencedor absoluto. Francisco Everardo Oliveira Silva filiou-se faz pouco ao Partido da República e foi eleito deputado federal com o segundo maior número de votos ao cargo que o Estado de São Paulo já conheceu. Antes dele, apenas Enéas, do igualmente estranho Prona, havia chegado a tão alta apuração. Se o doutor Enéas contou com 1.57 milhão de votos, Tiririca obteve 1.348.295 (6,35% do eleitorado paulista) e representa um enigma que, ao contrário do que garantem os adjetivos fáceis, é difícil de resolver.É fato que muitos eleitores votaram nele para reagir à política brasileira, mas a atitude nada tem de original. Em 1959, surgiu Cacareco, um pacato e idoso rinoceronte do zoológico de São Paulo, eleito vereador com 100 mil votos. Caso famoso é o do ator Grande Otelo, candidato a vereador em 1958 e que só não levou o cargo porque eleitores votaram no seu apelido, e não no nome da cédula: Sebastião Bernardes de Souza Prata. E a lista de candidatos inexistentes ou estranhos à política profissional não para por aí.
Mas não há ingenuidade na candidatura de Tiririca. Ao contrário, recursos consideráveis foram investidos na campanha, com intenção de transformá-lo num campeão de votos, levando consigo outros deputados do partido. O PR utilizou-se do complicado cálculo da nossa legislação, que procura balancear a distribuição de votos em eleições proporcionais, e fez mais três deputados na conta das cédulas endereçadas à Tiririca, dentre eles o controverso delegado Protógenes. Tiririca não é, pois, apenas um Cacareco.
Se a indicação do humorista representa um voto de protesto, é também termômetro para entender como se negociam as brechas deixadas pelas regras eleitorais. Mas essa massa de adesões representa mais: quem sabe simpatia. Tiririca é figura de linguagem e expressão populares, e parte de seus votos vem justamente de uma camada que estranha os candidatos à disposição e se identifica com os termos e o humor de nosso palhaço. Não há de ser mera alienação!
Impressiona a reação de Tiririca diante da acusação que recebeu. Impressiona mais ainda que a comoção geral vise ao eleito, e não ao eleitorado. Frente à denúncia da perícia técnica do Instituto de Criminalística, que apurou “discrepâncias na grafia” do documento apresentado pelo candidato (sim, porque no ato de inscrição é possível incluir comprovante de escolaridade ou declaração de próprio punho provando alfabetização), o acusado se vexa e o eleitorado mostra-se pasmo. Em primeiro lugar, o problema de Tiririca não é exótico ou particular.
É antes decorrência de um atraso estrutural e histórico. Em segundo, vale refletir sobre a complexidade de nosso sistema eleitoral que, à sua maneira, reflete enigma bem brasileiro. Neste país, marcado por índices altos de analfabetismo, a legislação reconhece à essa população o direito de voto, mas não o de candidatura. Podem eleger, não serem eleitos.
Tal paradoxo deveria chamar atenção para o problema do analfabetismo e para a questão de como o eleitor escolhe seus representantes.
O Brasil está entre os 10 países mais desiguais do mundo, contando com 16. 295 milhões de analfabetos (9,7% da população). Se levarmos em conta a definição de analfabetismo funcional – que inclui aqueles com menos de quatro séries concluídas –, o número salta para 33 milhões. Estudos revelam, ainda, que aproximadamente 8 milhões dos analfabetos concentram-se em 586 cidades, sobretudo nas capitais. Só na cidade de São Paulo são mais de 383 mil pessoas. O Estado do Ceará, já que Tiririca nasceu em Itapipoca, aparece na lanterninha no que se refere a índices de alfabetização: em 23º lugar, apenas na frente de Maranhão, Paraíba, Piauí e Alagoas.
Pesquisas recentes comprovam que o ator não foi registrado em escolas locais. Parentes e vizinhos afirmam, porém, que Tiririca tinha aulas e fazia seus “deveres” em casa, um costume tão brasileiro. Mesmo se desconfiarmos dos depoimentos dos amigos seria possível lembrar que, caso Tiririca fosse um analfabeto funcional, a exposição à leitura e redação públicas poderia lhe causar sério constrangimento.
Não quero trocar o seguro pelo inseguro e optar pela história do “talvez”. Até porque Tiririca foi o primeiro a declarar: “Eu não leio nada; minha mulher lê para mim”. Na sequência, porém, deixou mensagem no site afirmando que “anda chateado por ter de provar que sabe ler”. Fico pensando nas várias humilhações a que submetemos os destituídos de cultura letrada. O fato é que o artista pode mesmo ser incluído no artigo 350, que prevê como crime eleitoral “omitir, em documento público ou particular, declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais”.
No entanto, melhor do que apenas lamentar a ignorância alheia, é pensar sobre o destino dessa montanha de votos e acerca das intenções do eleitorado do comediante. Tiririca se sagrou deputado numa eleição em que políticos tradicionais não se reelegeram e na qual, em compensação, vários candidatos igualmente afastados do dia a dia de Brasília constam entre os mais votados. O que fazer com a danada da realidade?
Enquanto esperamos pela resolução, sugiro uma olhada nas propostas dos candidatos à Presidência, em especial na maneira como pretendem lidar com esse problema chamado analfabetismo, resultado perverso de séculos de exclusão social. Quem sabe o caso de Tiririca seja menos causa; é mais consequência.
Foto: Paulo Liebert/AE
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