Terra Brasilis, 11 de junho de 1730
Aos que me leem, ensinamentos e mistificações de um biltre. Eis o que se segue:
Após apoderar-me dos bens de um velho enfermo e tratante, e de enviá-lo aos piratas para ser vendido como escravo, segui, juntamente com malta insana e insensata que me acompanha, a novos ultrajes.
Tenho a meu lado o bandido que chefia tal grei, chamado Peró, e um estalajadeiro que a nós se consorciou. Buscamos outro enfermo rico, enquanto boa parte dos maganos que nos seguem pedem esmolas pela cidade alegando que tudo irá para os doentes pobres, os órfãos e as viúvas. Dizem que obras pias e sacros intentos os movem.
Caminhando por bairro formado por belas vivendas logo nos deparamos com casa de aspecto imponente a destacar-se das demais. É essa, logo decidimos. E nos aproximamos dos altos portões que cerram e protegem a imensa moradia.
Batemos palmas e aparece um criado bem vestido, com peruca e roupas formais. Curva-se ante nós e pergunta-nos o que queremos. Somos médicos e bondosos homens, garantimos. Estamos a procurar a quem esteja precisando de nossos conhecimentos e altas sabenças, vindos recém da Europa. Ó, diz o homem. Sim, respondemos nós. E perguntamos: por que manifestais tanto espanto? Porque, afirmou, meu amo e senhor encontra-se agravado na cama, sofrendo como um mártir.
E que doenças porta o vosso amo? Todas, assegura. Todas? Sim, todas. E como sofre aquela infeliz criatura de Deus. Então, logo convoco, dê-nos entrada a fim de que possamos atender tão insigne justo. E completo: temos carpideiras e rezadores para compor com seus cânticos e rezarias maior força aos nossos emplastros, poções e tisanas. Doente conosco já está curado. Ó, exulta o lacaio, e nos abre o portão. Um coro de carpideiras nos segue e logo começamos a caminhar em direção à casa.
Então, precavido, pergunto, como se quisesse realmente curar o amo da casa: e quais as atividades do vosso senhor? Indago, pois sei que muitas responsabilidades vividas ao mesmo tempo resultam em várias enfermidades, especialmente em pessoas sensíveis e honradas como certamente o é este industrioso senhor.
Sim, diz o empregado. Meu senhor zela com cuidado infindável para que homens e mulheres sejam levados ao trabalho, dedica-se com grande pertinência à agricultura e trata de dar às pessoas do comum acesso ao dinheiro, comerciando também com ouro.
Entendo tudo num instante: trata-se de um velho que comercia com escravos, explora trabalhadores na agricultura e, acima de tudo, é um usurário meléfico e tenaz, além de contrabandear ouro.
Percebo que o lacaio está muito magro, assim como também magros são todos os serviçais e os braçais da agricultura. Pergunto o motivo e ele me diz: nosso amo todo mês nos mostra o dinheiro que deveríamos receber, tilinta as moedas mas não n'as dá. Porquê?, busco saber. Ah, é para que não as gastemos em gulodices, perfumes e roupas; frivolidades, entendeis?, isso, para que possamos ter um ocaso tranquilo e um fim de vida honroso. Bondoso, não é mesmo?. Concodo com um aceno de cabeça e já então nos encaminhamos ao quarto do amo.
O servo parte na frente, abre as portas do quarto e encontramos a seguinte cena: ele está acomodado entre as coxas de uma negra opulenta e sua cama enorme range e está recoberta de mulheres fabulosas. Geme como um safado e, ao ouvir do aio que ali se encontram médicos de renome, bondosas criaturas da arte de Hipócrates, sai da mulher e começa a dizer-se imensamente cansado, doendo-lhe todo o corpanzil. Ó, como sou alvo de terríveis males, choraminga.
Fazemos profunda reverência e nos anunciamos: somos doutores caridosos e buscamos idosos enfermos a fim de os aliviar. Então, diz ele, ajudai-me. Eis que encontro-me em estado lastimável. Olho ao lado da cama e vejos garrafas e garrafas de vinho. Mando que as carpideiras entrem e também os rezadores. Espanta-se ele: o que é isto? Por acaso sois líderes de algum funeral? Estais a me agourar a morte? Tais cantares trazem nefandos sortilégios, exclama.
É grande o alarido, rezas e cantos místicos dominam o ambiente.
E então eu digo: não. Tais viventes apenas clamam aos céus a vosso favor. Ah, exulta. Então, viestes me curar? Sim, afianço. E logo digo: deitai-vos de bruços para que iniciemos a cerimônia curadora. Sem suspeitar de nada o tenebroso explorador deu-nos as costas. Então, sem pensar duas vezes, vibro-lhe potente golpe de vara nas costas. Ele tenta saltar, mas e dominado por dois dos meus sequazes que o mantêm de costas. E a vara flexível e firme desce mais e mais em seu espinhaço gordo. O bandido brame como um louco e pergunta: a serviço de qual entidade maligna estais? Sois servidores de Satã, de Baal, de Moloch? Tendes as mãos de Mefistófeles, horríveis doutores.
Não, responde Peró. Não, responde o estalajadeiro. Somos refinadíssimos patifes que salteiam as ruas a roubar e espoliar. E a vara continuava a descer. Grita ele: se sois patifes deveríeis estar sob o guante da polícia e sob a ameaça do carrasco-mor. Aqui, d'El Rey, aqui d'El Rey!, assopra, sob a velocidade dos golpes.
Peró então retruca: não sois melhor que nós. Apenas tendes sido dissimulado e hipócrita, explorando os pobres e desamparados. Trazeis ao mundo a miséria e o opróbrio, a solidão e a treva. Sois iguais a nós.
E continua o castigo. Até que, cansado, meu braço para. E ordeno que o estafermo seja levado aos piratas para a escravidão junto a povos distantes e maléficos. Ele desaparece em meio às mãos calosas de nossos sicários.
Apoderamo-nos de tudo. Vendemos a grande casa a gente de péssima reputação e pensamos no próximo golpe. O estalajadeiro nos informa: devemos ir à casa do Marquês de Camisão. E o que faz ele?, pergunta Peró. Usa um camisão, explica o estalajadeiro. Então, digo, deve ser homem de boas referências e sábios procederes. Vamos então para lá.
Após meia hora a caminho, todos montados nos homens-cavalos - lembrai-vos de que nos apoderamos de homens tolos e os fizemos de cavalos - chegamos. O esplêndido palacete é cercado de jardins que fariam inveja a Semíramis. Somos recebidos ao portão por um servo. Pergunta quem somos, mas já não nos dizemos médicos e sim grandes comerciantes d'além mar. Sabemos que o Marquês é homem envolvido com grandes negócios e muito próximo a El Rey e assim preferimos não nos arriscar. Os outros eram plebeus ricos; aquele, aristocrata. E com essa gente é preciso ter prestimosos cuidados.
Somos levados à mansão. Cruzamos um comprido corredor iluminado e elegante. Chegamos afinal à grande sala da casa. Ali, vimos: no meio da sala havia uma grande árvore. Num dos seus galhos, empoleirado, estava o Marquês de Camisão, que vestia um camisão. A seu lado, imperiais, um papagaio e uma anta, também empoleirados.
O nobre com eles travava animada conversa e parecia pedir conselhos.
(Continua)
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