segunda-feira, 6 de setembro de 2010

História de um menino que passou


Já fui rico; já fui muito rico
Emanoel Barreto

Já fui rico; já fui muito rico. Tinha o quintal da minha casa, enorme aos meus olhos infantes. Ali existia uma grande floresta: misteriosa, desafiadora, impenetrável. A grande mangueira desapareceu um dia sob os golpes de machados, mas em seu lugar brotaram um coqueiro, um belo pé de limão e bananeiras.

E eu era o senhor daquelas terras e em meio a elas cavalgava meu cavalo invisível. Já fui rico; já fui muito rico. Em meio às sombras, às palhas do coqueiro, aos galhos espinhentos do limoeiro, travei enormes batalhas contra gigantes, monstros de todo o tipo, feiticeiros  e cavaleiros desalmados. Vencia sempre. E voltava para casa, entrando pela cozinha, coberto de arranhões e de glórias.

Certa vez, num natal, ganhei de presente uma pequenina enxada e um ancinho. Não tive dúvidas: tornei-me um latifundiário; latifundiário não: agricultor. O suave declive entre o limoeiro e o coqueiro levou-me à realização de monumental obra: escavei um canal unindo uma árvore à outra e comecei o que me parecia enorme irrigação.

Todos os dias então minhas manhãs eram assim: encher baldes e baldes, derramar a água no limoeiro e vê-la descer, alumbrado, em direção ao coqueiro. Além das árvores era dono também de todas as lagartixas e formigas que por lá habitavam.

As largatixa, uma ou outra eram abatidas com tiros certeiros de baladeira. Afinal, eram dragões e dragões são perigosíssimos seres. Quanto às formigas, essas eram gladiadores. Enormes formigas de roça, formigas cabeçudas, eu as levava à arena imaginária do quintal e lá travavam combates encarniçados. E havia também Rone, meu cachorro vira-lata. Belo e de bom porte, era meu grande amigo.

Tudo era meu, tudo me pertencia. Já fui rico; já fui muito rico.

As bananeiras, essas eram  índios. Índios de uma tribo inimiga. Assim, ao lado do meu primo Bastião, fazia grandes ataques a tais inimigos. Armados com poderosos arcos e flechas feitos de palito de palha de coqueiro não foram poucas as vezes em que nos defrontamos com elas, ardilosas e traiçoeiras árvores. Vencemos sempre, porém.

Depois a vida me levou da casa e distanciou-me do meu quintal. E hoje, quando lá volto, o vejo tão pequenino, estreito, apertadinho. Mas não: o meu quintal ainda existe. Está lá: grandioso, enorme, cheio de árvores, segredos, mistérios; habitado por monstros e duendes. Eu sei, o meu quintal não morreu: agora ele está dentro de mim. Então, ainda sou rico; ainda sou muito rico.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito lindo. Me fez lembrar quando, na fazenda, Lá nas Minas Gerais, fazia bonecas de sabugo de milho, verdadeiras princesas e montava seus castelos sobre os troncos de braúna do curral. Era um reino encantado.
Nana