quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Da minha ficção para a realidade do jornal

Aldair Dantas
Há poucos dias publiquei texto que tinha como persongem artífice gráfico, um velho homem que mantinha a seu lado antigos instrumentos de composição e impressão. Hoje leio - e transcrevo - da Tribuna do Norte matéria em que personagem vivo em muito se parece àquele que criei. Voltarei ao meu personagem, em outras crônicas. Coisas da vida, coisas da ficção. (EB)

Artífice do tempo



 Maria Betânia Monteiro - repórter


O paraibano, radicado em Natal, Antônio José Bandeira é um daqueles homens simples e cheios de mistério; mas um deles, a sua arte revela: o amor pelos livros. Gráfico no mínimo há 60 anos, Seu Bandeira diz que pediu à mãe para matriculá-lo na escola porque queria entender as coisas que via. Trabalhando de dia e estudando à noite, ele não pôde se dedicar aos estudos por muito tempo, mas acabou encontrando nas palavras impressas o seu sustento e a sua longevidade.


Há 60 anos no ramo gráfico, Antônio José Bandeira mantém viva a arte de encadernar livros e de cunhar títulos e textos com tipos móveisHoje aos 83 anos, aposentado, Seu Bandeira arrastou para sua casa um pouco do que encontrou em estabelecimentos comerciais e empresas públicas: a amizade, as maquinas de corte e impressão, os tipos gráficos – milhares deles – e a arte de encadernar livros.

Com uma clientela cativa, Seu Bandeira recebe encomendas diárias de jornais da cidade, como a Tribuna do Norte, de professores, e de donos de bibliotecas. Um deles, um médico, que preferiu não identificar, já teve quatro mil livros encadernados pelo artesão. “Um livro encadernado por mim dura toda uma vida”, disse Seu Bandeira, que recebeu a reportagem do VIVER em sua casa, na manhã de ontem.

Vestindo uma camisa branca da Bahia, Seu Bandeira foi logo dizendo: “É da Bahia, mas foi comprada aqui mesmo, não tem problema não”. A conversa aconteceu na sala da casa do encadernador, que fica numa das ruelas antigas do bairro das Rocas. Dividindo o espaço com uma guilhotina mecânica enorme, uma prensa e uma máquina de gravar, todas alemãs e com no mínimo meio século de uso, ele falou sobre o seu trabalho e muito pouco sobre sua vida.

Com trabalho, ele disse ter conseguido conquistar quase tudo o que sempre sonhou; encaminhou seus cinco filhos homens e suas duas filhas mulheres na vida e comemora o fato de ter a comida garantida todos os dias. “Hoje não quero saber o que os meus filhos fazem. Quero que eles olhem para trás e vejam o que eu fiz.” Mantendo uma rotina pesada, Seu Bandeira acorda às 5h todos os dias e percorre a rua onde mora, para tomar café com a filha. Pouco depois está de volta, dando início ao seu trabalho.


Ele corta os papéis, folhas avulsas, ou livros inteiros. Depois, faz o agrupamento das páginas, costura manualmente com linha de náilon, num belíssimo trabalho artesanal e sela com cola branca. Depois de deixar secar, Seu Bandeira alinha a brochura com a guilhotina e passa para a segunda etapa. Com papelão e um tipo especial de papel, ele faz a capa e a finaliza com uma faixa de brim no dorso, onde são impressos, com tipos móveis, os dados do livro. O encadernador fala que para compor as frases que serão imprensas no dorso, ele leva cerca de trinta minutos.


O trabalho é minucioso. Afinal, são 25 tipos de fontes, sendo cada uma delas composta de diversos tamanhos. As pecinhas de chumbo ficam distribuídas em diversas gavetas, organizadas no corredor da casa de Seu Bandeira. “Mas eu não reclamo de nada disso não, pois se inventassem um computador para encadernar eu já estava vendendo picolé na praia.”

Apesar de todo o trabalho, Seu Bandeira diz estar satisfeito com a profissão. “Aqui a gente lucra pouco. Nós fazemos mesmo é por paixão”, diz ele, que usou o plural para se referir aos filhos, que no final do expediente (ou mesmo no intervalo) se unem a ele. “Ensinei tudo aos meus filhos e gostaria que eles ensinassem aos filhos deles também.”

Um de seus filhos, Francisco Bandeira, chegou ao local de trabalho na hora em que o pai havia feito, mais uma vez, o mesmo pedido à reportagem: “Não publica isso não.” Ele estava falando de uma das fases de sua vida, quando teve que comer mingau de jabá com farinha fina, para poder sobreviver.

O fato não envergonha Seu Bandeira. O que ele não quer é revelar os detalhes sobre sua vida. Todas as informações preciosas ele quer guardar para compor sua autobiografia. Uma forma de colocar em prática o sonho de ser jornalista.

Sem detalhes

Aguardando que esta repórter fechasse o caderno e guardasse a caneta, Seu Bandeira começou a revelar detalhes de sua vida, depois de ter feito um esforço enorme para escondê-los durante a entrevista. Ele falou de como nasceu, como chegou a Natal, quais trabalhos realizou antes de ser gráfico, quem conheceu, quando se casou... Ele, porém, pediu sigilo total sobre o assunto.

Mas o que seu Bandeira não sabia é que debaixo das lentes pesadas de seus óculos escapavam várias outras informações preciosas, como a sua vivacidade, seu empreendedorismo, a saudade pelo tempo que se foi, o sofrimento da perda de um filho e a frustração de não ter estudado tanto quando desejou.


O encadernador fez apenas um pedido: que nesta matéria fosse citado o nome de Alfredo Lira, dono da Tipografia Lira, local onde aprendeu quase tudo o que sabe. Segundo ele, a outra parte da aprendizagem veio como consequência. Seu Bandeira trabalhou no jornal católico “A Ordem”, na Editora da UFRN, e, assim como os filhos, no final do expediente ia fazer o que mais gostava: aprender.

“Eu ia quase todas as noites à Tribuna do Norte. Lá, aprendi a fazer os títulos das reportagens e amigos”, disse ele, que há mais de 30 anos tem a TN como cliente. Frustrações na vida foram três, mas ele só permitiu falar de uma: a de não ter sido jornalista. As outras duas provavelmente estarão em sua biografia, que não tem data para ser publicada.

Um comentário:

Unknown disse...

Muito bonita a estória de Seu Bandeira.
Homem honesto, trabalhador e um sonhador....
Pena. Muita pena do seu grande sonho apenas ter sido um sonho....