quarta-feira, 28 de julho de 2010

O DIÁRIO DE BICALHO: FRENTE A FRENTE COM OS FARAÓS


"...QUER MORRER? QUER MORRER AGORA MESMO?"

Prestimoso Diário,

Tive hoje marcante demonstração da força sinistra da Conspiração, que se alevanta contra a Augusta e Responsável Ordem dos Homens Bons, Frequentadores de Porões. Saía eu de preclara palestra no Porão Central, onde me houvera com nosso Deão, o Honorável Raçaça, quando fui atacado. Fui atacado!, Diário Amigo, atacado!

Sim, não se tratava de ilusão de paranóico, como costumam me dizer minha sogra e minha mulher, disfarçando seus reais intentos de me verem morto: "Bicalho, querido, acalme-se. Você não está sendo perseguido. Isso é coisa da sua cabeça". Certamente querem, assim , que eu saia de peito aberto e seja eliminado. Só pode ser.

Mas, voltemos ao solerte ataque. Caminhava eu em direção ao meu carro, quando senti um forte empurão. Já quase caía, e quatro velhacos, veja bem, velhacos!, se apoderaram de mim. Meteram-me acabeça abaixo um saco de aniagem que me chegava aos pés. Fiquei parecido com um tapete enrolado. Gritei, lutei, mas não tive condições de me livrar dos assaltantes.

Fui levado a um beco escuro, apesar de ser dia, e ali covardemente interrogado. Os celerados tiraram-me do saco e o mais tosco dele perguntou-me: - Procuramos o Embalsamador. Você é o Embalsamador? Temos ordens de achar o Embalsamador. Você é o Embalsamador?

Respondi aos berros: - Do que diabo vocês estão falando? Pensam que eu trabalho em alguma funerária, por acaso? Quem diabo é embalsamador aqui?

- Não é embalsamador. É o Embalsamador. O mestre dessa nobre e funérea arte. Logo que vimos você, soubemos que é o Embsalsamador. Desculpe-nos os maus tratos, mas era preciso levá-lo rapidamente.

- Eu não sou embalsamador. Detesto embalsamadores. Se pudesse, matava todos - respondi.

Esse, Diário, meu erro. Deixando transparecer em seus semblantes de ferro bruto toda a sua inclemência e sordidez, um deles me esmurrou: - Então é você que quer matar o Embalsamador, heim? Patife! Tome! Bem que os Cenaduladores avisaram: tem gente querendo matar o Embalsamador.

E desferiu-me outro soco. Uh!, doeu, Diário colendo. Nesse instante percebi: era a Conspiração agindo novamente. Os Cenaculadores, os políticos do Cenáculo, estavam por trás disso. Rápido como um raio, gritei: - Eu também sou um Cenadulador, idiotas! - e lhes mostrei meu diploma falso de Cenaculador.

Foi água na fervura. Imediatamente fizeram-se cheios de mesuras e pedidos de vênia, perdão e subserviência. Exigi ser levado imediatamente ao Cenáculo e lá, muito bem recebido, notei, pasmo, estranho ambiente: estavam todos vestidos de faraós. Com aquele chapelão de faraó, com aqueles dois pauzinhos cruzados e aquela barbicha na ponta do queixo.

Logo logo, duas mocinhas me vestiram de faraó também. Não entendia nada Caríssimo Diário. Então, fui forçado a perguntar: - O que se passa, meus nobres pares?

E o mais velho deles me disse: Vinde e vede - e puxou enorme cortina. Surgiu enorme panorama. Ao fundo viam-se enormes pirâmides em construção; e milhares de pobres seres trabalhavam puxando pedras colossais, erguendo as ciclópicas construções.

- O que diabo é isso, digno Cenaculator? Estamos num hospício? - perguntei.
- Por Osíris!, Cenaculator, não diga isso. Não ofenda os deuses. O que vedes são as obras de nossas vidas. Não vedes que o povo trabalha docemente? Não vedes que as pirâmides serão nossos túmulos? Assim, para a glória de Hórus no ninho, todos se dedicam a este piedoso trabalho: erguer nossas pirâmides. Para isso o Cenáculo existe, para construir túmulos. Túmulos. Grandiosos. E nada mais grandioso que uma pirâmide. Pirâmides impõem respeito. Por isso o Cenáculo é respeitado.

- Meu Deus, Cenaculador. Quem teve tão desastrada e monstruosa ideia? - quis saber imediatamente, Amicíssimo Diário. - E o que me responderam? O que responderam?

O seguinte: - Um grande empreiteiro, a quem muito favorecemos, nos deu todo esse terreno, vasto e lindo, a troco de nosso patrocínio político à sua causa: construir, construir enlouquecidamente. Em qualquer parte, qualquer coisa que der na telha, para o bem da nação. Muito nobre, muito nobre, não?

- Mas, Cenaculador - exigi uma explicação - e esse povo, esses trabalhadores, de onde vêm.
- Ah!, nobre colega. Dissestes bem: o povo. O povo nós compramos numa liquidação. Estavam vendendo povo aos magotes e compramos povo e preço de custo. Enfardamos, colocamos em portantosos caminhões e lá está o povo, trabalhando. O trabalho enobrece o homem, sabíeis? - respondeu ele com um leve sorriso.

- E o que o povo ganha com isso? - perguntei aterrado, Digno Diário.
Ele respondeu: - Chibata. O povo ganha chibata. Chibatadas, golpes de azorrague, de látego e de açoites. Látego, que palava imponente, não? Já pensou?: látego, látego, látego. É sonoro e tem ritmo. Látego, látego, látego,meu  digno par. É poético. Látego: um achado poético.

- E o Embalsamador, quem é?
- Ah, tocastes em ponto que nos é caríssimo, bondoso Cenadulador. É ele quem nos irá embalsamar quando morrermos. Quer morrer? Quer morrer? Terá exéquias de faraó. Quer morrer? Quer morrer agora mesmo? Será uma honra inaugurar nosso grande sítio fúnere com vossos respeitáveis despojos. E daqui a milhares de anos será descoberto como grande descoberta aquelógica por neoegiptólogos.

Com essa conversa entrei em pânico. A Conspiração, mesmo pensando que eu era Cenaculador, me propunha a morte Amigo Diário. A morte. Ao que vi, o Cenáculo só presta para matar.
E fiz a pergunta decisiva: - Quem é o Embalsamador?
(Continua na edição de amanhã).

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