segunda-feira, 26 de julho de 2010

De Folha a folhetim

 Vamos discutir o sexo dos anjos?
Emanoel Barreto

O jornalismo é levado a efeito diariamente a partir de valores/notícia. Que são o conjunto de propriedades/características que um fato ou uma declaração têm - importância ou interesse -, que justifiquem sua escolha, tornando-os potencialmente noticiáveis. Ou seja: quanto mais um fato/declaração for importante ou interessante segundo uma determinada política editorial, maior possibilidade terá de ser noticiado, virar notícia.

Observe bem que tudo isso é relativo, como relativa é a própria vida histórica onde tais fatos/declarações acontecem. A política editorial de cada jornal é, no fundo, o que determina o que é importante ou interessante. Essa política editorial mescla interesses político-ideológicos, público-alvo, questões de mercado. Todos esses fatores atuando uns sobre os outros.

Como exemplo a Folha de S. Paulo é bastante elucidativa. Sua recente reforma gráfico-editorial a encaminhou, no plano do conteúdo, a privilegiar questões que antes o Projeto  Folha engulharia só de pensar-se em sua admissão: o noticiário policial ganha espaços na primeira página, o futebol alarga-se na mancha gráfica, trivialidades viram manchete.

Exemplo claríssimo é a edição de hoje que tem como manchete "Maioria já deu, levou e é contra probir palmadas". Trata-se de projeto de lei do governo federal que proíbe castigos físicos em crianças. Afora o fato de que o projeto parece ser inexequível, pois se se tornar lei não se terá como vigiar pais e mães no recesso dos lares, a tola notícia eleva à condição de manchete de primeira página assunto de menor monta.

Para quem sabe ler uma manchete além de sua mera formulação sintática, está claro que ela representa atitude tático-mercadológica do jornal em busca de público que dê atenção ao sensacional em detrimento de questões sérias, como política.

Tanto, que notícia da divulgação de papéis secretos que tratam da guerra suja dos EUA no Afeganistão foi colocada bem abaixo, no canto direito, minimizando a descoberta. Essa seria a manchete dotada de valor/notícia sob todos os aspectos. A guerra dentro da guerra. Um espetáculo sórdido com assassínios perpetrados por tropas e criminosos profissionais a serviço de Tio Sam.

Mas isso não fez manchete. Como também não o fez notícia dando conta de que Marta Suplicy lidera voto ao Senado em pesquisa do Datafolha. Mas, cuidadosamente, foi colocada ao lado dela "informação" dando conta de que o historiador e antropólogo mexicano Carlos Castañeda considera que "Lula acumula fracassos em sua política externa". Uma notícia desconstruindo outra, por suposto.

Quem conhece jornalismo por dentro sabe que o declaratório de alguém muitas vezes serve para o jornal dizer, por terceiro ator, aquilo que ele próprio, jornal, queria mencionar. Foi o caso de Castañeda. Aí entram dois aspectos de relevo: primeiro porque suas declarações estão inseridas na seção "Entrevista da Semana", ou seja: o ator declarante é escolhido previamente para falar a respeito de algo. É convidado, percebe? Não dá a entrevista a partir de fato ocorrido como um grande acidente ou o resultado de eleição presidencial, por exemplo.

O declarante é chamado a depor. Não refere a fato. Sua declaração "é" o fato, esse é o segundo aspecto. Se não tivesse sido convidado não haveria fato. Castañeda, inxplicavelmente, foi constituído em autoridade para, de repente, tratar de política externa brasileira e dizer aquilo que a Folha queria que dissesse. Não há notícia, construiu-se uma notícia visando obter rumor social no seu entorno.

Sim... ele está participando de debate hoje, em S. Paulo, a respeito de democracia na América Latina. O gancho foi esse, somente esse. 

Castañeda não aprofundou o assunto. Até porque respondeu a apenas seis perguntas - pelo menos somente foram publicadas seis perguntas e suas respostas. Se a intenção era abarcar a complexa situação da América Latina com seis perguntas...

O dado Lula na entrevista é tão-somente isso: faz parte de ação metódica, de fogo de artilharia do jornal castigando o objetivo de guerra PT e sua maior figura icônica. Bater sempre é a norma. Tudo parte de ação tática diária: não dar tréguas ao inimigo. Vamos à edição de amanhã. Quem sabe, discutir o sexo dos anjos.

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