De repente a PF baixou no Diário de Natal: os
agentes queriam “falar comigo”
Por Emanoel Barreto
O ano era 1985 ou 1986, sei lá.
Eu era repórter de política do Diário de Natal. Certo dia, ao entrar na redação
vindo da Assembleia Legislativa, fui surpreendido pelo hoje saudoso jornalista
Luciano Herbert com a seguinte informação: “Barreto, Albimar – Albimar Furtado,
diretor do jornal – me disse que dois agentes da Polícia Federal estiveram na
sala dele para saber se você trabalha mesmo aqui. Ele confirmou que você
trabalha aqui e os policiais o tranquilizaram dizendo que estava tudo bem, era
só para saber se você é mesmo repórter do jornal.” E completou: “Fique
tranquilo, não há problema algum...”
A informação me soou no mínimo
estranha: dois caras da PF terem o trabalho de ir a um jornal só para informar
a um repórter que as coisas estavam bem é meio esquisito, não
é? Pelo menos eu acho. Porque, até onde sei, não é papel da polícia
procurar cidadãos, acalmá-los, dizer-lhes que está tudo bem e ir embora. Pelo
que sei, polícia quando sai é para investigar ou, na pior das hipóteses,
prender...
Diante de tão esquisita situação
fui à sala de Albimar. Ele afirmou angelicalmente a mesma coisa que Luciano:
“Não, não se preocupe: realmente eles estiveram aqui, falaram comigo, confirmei
que você é do jornal, eles disseram que ‘está tudo bem’ e foram embora. Não se
preocupe. Eles queriam falar com você, mas como você não estava... Mas eles
disseram que está tudo bem, viu?”
Respondi: “Se você está
dizendo...” e fui para a Redação preparar minhas matérias. Enquanto isso fiquei
pensando: como é que dois experientes jornalistas são tão ingênuos a ponto de
não perceber que havia algo a mais no ar, e pelo jeito não eram apenas mosquitos?
Enfim, diante da candura dos
meus colegas dei também o caso por encerrado e fui trabalhar. Dias depois, uma
surpresa: o mesmo Luciano informou, agora com cara de preocupação: “Barreto, um
oficial de justiça veio aqui lhe procurar. Você está sendo processado não sei
por qual crime e precisa assinar um documento oficializando que sabe do
processo.”
Eu disse “o quê?!!!!”
E ele: “É verdade.”
Pensei: “Eu num disse?
Não estava tudo bem: Luciano era realmente um ingênuo e Albimar era um doido.”
Mas, não sei bem por que não dei muita importância ao fato e fui redigir meus
textos. Afinal, eu não havia feito nada de errado e segui em frente. Dois dias
depois o oficial de justiça procurou-me novamente, eu não estava e ele se foi.
Mais uns três dias e repetiu-se tudo: o sujeito me procurava e eu sempre
fora, cumprindo pauta.
Dessa vez, porém, deixou uma
ameaça: eu deveria dirigir-me à repartição onde ele trabalhava e assinar o
documento de citação. Era isso ou o processo ia correr à minha revelia. Em
suma: eu estava lascado.
Então, caiu a ficha. Sabe Kafka?
Já leu O processo? Foi assim que me senti: estava sendo processado e não sabia
o motivo, igualzinho ao livro. Mas, diante da mudança de quadro peguei o carro
e fui procurar o tal funcionário. Encontrei-o, tomei conhecimento do crime pelo
qual era acusado, assinei o papel, peguei a minha cópia da citação e fui
embora. Sim: e ele ainda me deu um aperto de mão. E disse a frase fatal: “Está
tudo bem.” Na verdade, era exatamente o contrário: agora eu era, literalmente,
um homem na mira da lei.
E o meu crime: ter publicado uma
notinha na coluna Roda Viva, de Cassiano Arruda, que estivera fora alguns dias
e eu fora seu interino. A tal nota, minúscula, na parte inferior da coluna,
informava a respeito do resultado de uma pesquisa sobre intenção de voto numa
cidade do alto-oeste potiguar. Especificamente o crime estava no fato de que a
pesquisa não havia sido registrada no Tribunal Regional Eleitoral, o
que por lei é obrigatório . Eu não atentei a isso e publiquei.
Alguém, que nunca soube quem
foi, havia representado contra mim a partir desse fato. Suspeito que tenha sido
algum dos candidatos que ficaram em segundo e terceiro lugares.
A informação sobre a pesquisa me
fora passada por Joaquim Pinheiro, um jornalista conhecido meu, mas um tipo com
quem não tinha muito contato. Não lembrei de perguntar se o material fora
autorizado pela Justiça para publicação, ele não tocou no assunto e deu no que
deu: uma mera informação, sem qualquer propósito de beneficiar qualquer lado,
estava me levando às barras do tribunal.
Mais uns dias e fui prestar
depoimento à Polícia Federal. Cheguei lá e disse: “Boa tarde. Vim aqui para ser
interrogado.” O recepcionista, muito atencioso, disse: “Tudo bem. Venha por
aqui.” Novamente “tudo bem”. O cara entra numa fria e tudo bem.
Pensei: por que tudo o que vem
para me lascar vem precedido de um “tudo bem”? E caminhei ao lado do rapaz da
PF.
Fui levado a uma grande sala,
cheia de birôs, onde fui recebido por dois senhores de gravata, as mangas das
camisas sociais arregaçadas. Eram dois delegados. Eu supunha que ia ser um
interrogatório truculento, cheio de perguntas capciosas, mas não. Foram feitas
perguntas objetivas visando saber se eu tinha interesse na eleição de alguém e
se era filiado a algum partido político. Tudo nesse tom. Jogo limpo.
Sim, ao chegar já encontrei
Albimar me esperando ao lado de um advogado do jornal. Tinham vindo dar-me
assistência jurídica e eu nem havia pedido. Claro, o jornal tinha obrigação de
me apoiar, mas eu sequer havia pensado nisso, tal a minha confiança de que nada havia
feito de errado. Uns 20 anos depois, em cerimônia na UFRN, agradeci
publicamente a Albimar pelo gesto. O agradecimento se deu durante o lançamento
de um ebook que tratava de perfis biográficos de jornalistas, eu e ele citados
no livro.
Bom, passada essa fase da PF
viria a etapa em que eu seria inquirido por um juiz e um promotor. E lá fui eu,
trazendo o tal colega jornalista como minha testemunha de defesa. Aí, o juiz
disse: “Já li muitas das suas matérias, gosto muito das suas crônicas, mas vou
ter de processá-lo, certo?”
Respondi solenemente: “Sem
problema. Estamos aqui para isso, Excelência.” O magistrado seguiu um roteiro
mais ou menos idêntico ao dos delegados da PF. O problema para ele é que
praticamente não havia base para a acusação, a não ser a questão de a pesquisa
não ter sido registrada. E as perguntas, assim, não me levaram ao canto do
ringue, digamos assim.
Explico: eu não morava na cidade
onde fora feita a pesquisa, não tinha ali qualquer vínculo político ou
familiar, sequer conhecia os candidatos. Na verdade não conhecia ninguém lá e a
notinha era graficamente insignificante: tivera uns três centímetros de altura
por dois centímetros de largura, publicada no rodapé da coluna. Objetivamente:
eu não tinha qualquer interesse no resultado da eleição nem nunca buscaria
beneficiar a quem quer que fosse utilizando o jornal onde trabalhava.
Em minha defesa tive o cuidado
de apresentar aos autos uma declaração formal do chefe do setor de circulação
do jornal atestando quantos exemplares haviam sido vendidos na cidade no dia da
publicação da nota: cinco. Miseravelmente cinco exemplares estavam me jogando
naquela situação. Uma briga paroquiana e mesquinha tinha virado um imbróglio
para mim. Cinco jornais nunca teriam a possibilidade de definir a eleição de
ninguém.
O problema, na sequência dos
depoimentos, foi quando o colega jornalista foi chamado a depor. O juiz jogou
uma isca e ele caiu. Foi feita a seguinte pergunta: “O Sr. acha que o
articulista deveria ter publicado essa nota, divulgando uma pesquisa que não tinha
registro?”
Em vez de engatar uma resposta
que me defendesse, ele agiu como um jogador de várzea: aquele que tem tudo para
fazer o gol, a trave está aberta, o goleiro batido, mas, em vez de chutar a
bola o sujeito dá um coice no chão.
Sabe o que minha testemunha
disse? O seguinte: “É... pela experiência dele, né?...” Ou seja, eu deveria ter
tido precaução. Eu pensei, “meu Deus, mas foi esse sujeito quem me passou a
informação. Podia ter dito que me conhecia, que era sabedor de que eu jamais
iria usar do jornalismo com finalidades escusas.” Mas fez a estupidez, e, por
um momento, senti as coisas se complicando. Eu poderia ter revelado que fora
ele a pessoa que me dera a informação sobre a tal pesquisa mas preferi aguentar
o tranco.
Eu já estava começando a pensar
que ia sair dali algemado e com um saco preto na cabeça, quando o juiz encerrou
o interrogatório. O promotor também fez umas perguntas, deu-se por satisfeito e
aquela cena terminou. Claro que não saí algemado nem nada - são apenas ilações
estilísticas para dar clima ao texto, sabe?
Dias depois saía a sentença:
além do meu advogado até o promotor pedia a minha absolvição. Às vezes
comento sobre esse assunto com minha mulher e digo, brincando: “Minha filha, eu
espero que os caras da PF não se arrependam de não terem me prendido e reabram
o processo. Quem sabe, chega aqui em casa uma dupla de policiais federais
procurando por mim, e avisando: 'Ei rapaz, fique tranquilo que a gente veio
aqui só pra lhe avisar que está tudo bem...'"