quinta-feira, 17 de outubro de 2024

 Desejo da matar: 

o plano sinistro

para um dia de ira

 Por Emanoel Barreto

Nos idos de 1974 eu era repórter da editoria de polícia do Diário de Natal. Uma tarde apareceu por lá um homem que se identificou como funcionário da Secretaria de Segurança: queria informar a respeito de um enfrentamento que pretendia ter com um colega de trabalho: situação a ser resolvida a tiros, assunto de inimizade terrível e ódio sincero.

Não quis falar a respeito do motivo para o surgimento de tamanha raiva. Queria mesmo era descrever como se daria o confronto, coisa que sua mente perturbada queria consumar a qualquer custo, mesmo que, em meio aos balaços, ele viesse a morrer. O sujeito tinha olhos negros e um bigode que cobria fartamente o lábio superior. As mãos fortes pareciam dispostas a se destruir mutuamente, tal a forma como se apresentavam: crispadas e quase pingando o fel da sanha que animava o tal sujeito.

Eu perguntando a respeito do intento, ele falando, eu anotando. Indaguei sem interrogação: “Quer dizer que o senhor pretende atacar seu colega...” Ele disse “sim” e acrescentou, colocando o cotovelo sobre o birô e fechando a mão direita como se fosse dar um murro que teria a força estúpida de um coice: “Sim, e pretendo atacá-lo de forma definitiva.”

Quando eu quis saber o que seria exatamente essa forma definitiva claro que já imaginava a resposta. Ele foi objetivo ao dizer que o homem alvo de tamanha raiva, gana a furor não escaparia. Morte certa seria o fim daquela jornada insana.

À medida que detalhava seu plano ia ficando mais e mais excitado em seus intentos molestos. Gesticulava e falava alto, chamando atenção. E olhe que ele estava numa redação, ambiente que naquele tempo era muito barulhento, com o entra e sai de repórteres e fotógrafos, máquinas metralhando textos e preenchendo laudas e laudas.

Disse em seguida: “Terei comigo uma pistola muito boa, um revólver calibre 38 e outra arma de fogo: pesada, para bater e machucar.” Ainda hoje, sempre que lembro desse assunto, me pergunto por que ele iria manusear uma arma de fogo para “bater e machucar” em vez de usá-la para disparo. Talvez quisesse iniciar o combate corpo a corpo para depois dar início ao tiroteio. Perguntei e a resposta foi essa: “Depende do momento.”

Quando quis saber onde se daria o confronto foi taxativo: “Será na rua, em frente à Secretaria de Segurança.” O plano era simples: esperar que o inimigo chegasse à Secretaria – que na época funcionava onde fora a Faculdade de Direito, na Ribeira –, defrontá-lo e partir para a agressão. Olhou para mim e disse, olho no olho:

“Espero liquidar o assunto em menos de cinco minutos. Quero despachar o sujeito – cujo nome não revelou de jeito nenhum –, mas quero evitar atingir algum passante, embora isso seja sempre uma possibilidade..”

Quando seria o confronto? “Não sei. Talvez amanhã, quando a edição dessa entrevista estiver na rua.”

Não quis dizer mais nada. Agradeceu e saiu pelas portas de vaivém da redação, típicas de um saloon de filme de caubói. Portas bem apropriadas para receber o assunto que acabava de ser tratado.

Ainda sob o impacto daquela loucura e como eu era muito novo em jornal, coisa se três ou quatro meses, dirigi-me a colegas mais experientes e contei o que havia acontecido: quase me disseram em coro: “Você está doido? Isso é um duelo. O jornal não pode noticiar a programação de um crime. Deixe isso pra lá.”

Como sequer havia começado a redigir a matéria engavetei na memória aquele assunto e somente hoje estou falando dele. Detalhe: dia seguinte eu estava esperando que a qualquer momento chegasse a notícia do embate em frente à Secretaria. Eu teria que ir direto para lá, para saber detalhes. Até hoje não ouvi falar a respeito...

 

 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

 “Quem vai me

 pagar a cobra?”

 

Por Emanoel Barreto

A morte de Seu João Vilaça chocou a todos quantos o conheciam. Homem bom, sertanejo de têmpera de aço, tinha, por trás da cara amarrada, um grande coração, jamais negando uma ajuda a quem quer que fosse. Assim, familiares e amigos estranharam muito quando fora atacado e morto por um bandido. O agressor chegou e, sem palavra, disparou a arma uma, duas, três vezes. Seu Vilaça caiu pronto.

Homem querido, o velório recebeu muitas presenças. Todos lamentavam a morte: “Era um velho duro”, disse um amigo. “Se não fosse isso, ainda iria viver muitos anos”, completou uma senhora. As pessoas lamentavam o ocorrido e enfatizavam: mas como isso poderia ter acontecido? Não houvera discussão, briga, desentendimento algum. Nem mesmo uma tentativa de assalto.

A família lamentava a frieza como o crime fora cometido, o que aumentava a revolta e a dor. Ninguém encontrava explicação e havia mesmo quem pensasse em reunir um grupo de amigos para encontrar e justiçar o matador. “Não se pode aceitar uma coisa dessas. A violência chegou a limites do insuportável para os cidadãos de bem”, reprovava um velho amigo de Seu Vilaça.

Como, por que o bandido tomara tal atitude frente a um homem velho, indefeso, incapaz de agredir alguém? Nisso entra na casa um estranho. Esgueirando-se por entre as pessoas o homem pediu licença a Genebaldo, um amigo do morto, e disse que precisava urgente falar com alguém da família, alguém muito próximo, de preferência filho ou até mesmo a viúva.

Insistia: era assunto importante e somente com uma pessoa assim poderia conversar. O velho tinha prole numerosa. Genebaldo ficou assim..., olhou para um lado, para o outro e afinal seus olhos encontraram a figura de Arminda, a filha mais velha de Vilaça, e que estava em melhores condições emocionais frente à tragédia.

Ela conduziu o estranho à cozinha e dele ouviu a seguinte história: Seu Vilaça sempre havia devotado grande ódio a bandidos. Desde os bandidos convencionais, digamos assim, até aqueles de colarinho branco. “Sei disso”, admitiu Arminda. “E daí?” Daí, prosseguiu o homem, que Seu Vilaça havia encontrado um modo engenhoso de matar bandidos, sem que ninguém desconfiasse.

“Como assim?” Ora, muito simples: toda semana o estranho, que morava numa cidadezinha do interior, capturava uma cobra que era levada a Seu Vilaça. Ele recebia, pagava e colocava o bicho numa valise bem trancada. Tinha preferência por cascavéis (“Adoro o barulhinho assassino do maracá”), o homem fez questão de detalhar essa fala, assumindo ares de grande conhecedor do velho e suas ações de justiçamento.


“E para que ele queria essas cobras?”, quis saber Arminda. Claríssimo estava, salientou o sujeito: para matar bandidos. Seu Vilaça ia ao Centro da cidade com a valise na mão, encaminhando-se a locais onde notoriamente agiam ladrões especializados em furtar bolsas, pastas, carteiras. Ele se enfiava no meio da multidão, procurando atrair a atenção dos bandidos.

Logo, logo, um deles se atirava sobre o velho e roubava a mala. É claro que, na confusão, na correria, o bicho ficava assanhado e, pouco depois, quando o ladrão abria a valise, a cobra pá!, tacava-lhe a mordida fatal. "E olhe que ele havia matado muitos, muitos desse jeito, viu? Pelo menos uns vinte."

“Então...”, balbuciou Arminda....então, esclareceu o homem, Vilaça fora morto por vingança. “Vingança?, balbuciou a mulher. Sim. Claro. Os marginais terminaram percebendo que estavam sendo vítimas de uma armadilha e abriram fogo.

E afinal, frente a uma Arminda paralisada de susto e dor, o homem arremeteu seu bote: “Sim, minha senhora, foi uma vingança. E eu não posso ficar no prejuízo. E agora por favor decida: quem vai me pagar a cobra?”

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Frei Damião falava ao povo e a multidão pedia o comunismo

 Por Emanoel Barreto

 Creio que foi no ano da graça de 1980 que tive a oportunidade de entrevistar a venerável figura de Frei Damião, o santo do sertão, amado do povo, protegido de Deus e de Nossa Senhora, vindo da distante cidade de Bozzano, Itália, para cuidar do rebanho de sertanejos, preservar a fé e encaminhar as almas todas para o Céu.

Fui à cidade de Ceará Mirim, pouco mais de 40 minutos de Natal, onde ele se encontrava. Encontrei-o na igreja matriz. Abençoado templo povoado por imagens de santos e de anjos, querubins e serafins. A pequena e cândida figura atendia em confissão a enorme fila de mulheres cobertas por véus e envoltas em doce auréola de rezadeiras, como só as existem no Nordeste. Mulheres suadas de fé.

E eu fiquei olhando para elas. Atentei para suas bocas que fervilhavam baixinho rezas velhas, mistérios sussurrados em uma língua estranha que jamais consegui apreender desde quando, ainda menino, olhava minhas tias fervorosas diante de uma vela e de uma imagem de Nossa Senhora. Deviam ser coisas muito altas, evoladas da inefável religião dos bons, áugúrios de uma vida melhor depois da morte, quem sabe o repouso calmo no regaço da Virgem.

Preste atenção na boca de uma velha rezadeira: é ali que mora a alma, tenho certeza. A minha mente de repórter, todavia, estava preocupada com algo mais urgente e menos devoto: o tempo. Eu tinha hora para voltar à Tribuna do Norte e fazer o meu texto.

Com alguma insistência junto a um auxiliar do beato consegui parar a confissão e ele me atendeu. Confesso, sem trocadilho algum, que nem mesmo sei o que perguntei. Mas, o que mais valia era relatar o encontro dulcíssimo do pastor com o seu rebanho, captar o ambiente angélico, a doçura do olhar do Frei, seus conselhos e penitências passadas àquelas pessoas sacras e pias.

Saí, confesso novamente, com a alma cheia de alguma candura - certamente meu coração de repórter, feio e mau, tocado pelos instantes miríficos. Assim, de volta à redação, encontro com outra figura humana portentosa: Dorian Jorge Freire, diretor de Redação. Católico, minúsculo de tamanho mas enorme em sabedoria e humanismo.

Terminado o meu texto, Dorian, que também tinha grande espírito de humor, contou-me o seguinte: 

Certa vez, Barreto, Frei Damião estava com suas missões pelos sertões distantes. Fazia sua costumeira pregação contra o pecado, a devassidão e o adultério. Defendia o sacramento do matrimônio e dizia que, sem ser casado, o casal era "como o cachorro e a cachorra, o touro e a vaca." . Advertia também a todos contra o perigo do comunismo vermelho e ateu.

E dizia: "O comunismo é pecado grande, pecado mortal. O comunismo é a besta-fera que vem para desafiar o Evangelho. O comunismo é o perigo até mesmo para as mocinhas." O povo olhava e ouvia tudo, pasmo, temeroso, pronto para fugir, caso o comunismo chegasse a qualquer instante.

  Parecia até que o comunismo estava por ali, pronto para desferir seu bote. Afinal, Frei Damião fez sua última invectica contra o comunismo periculoso e bradou ao povo sertanejo, como se fora um novo Conselheiro: "E então, quereis o comunismo?, e o contrito povo, procissão desvelada e crente, respondeu piedosamente, em coro monumental "Quereis!"

 

 

domingo, 29 de setembro de 2024

  De repente a PF baixou no Diário de Natal: os agentes queriam “falar comigo”

Por Emanoel Barreto

O ano era 1985 ou 1986, sei lá. Eu era repórter de política do Diário de Natal. Certo dia, ao entrar na redação vindo da Assembleia Legislativa, fui surpreendido pelo hoje saudoso jornalista Luciano Herbert com a seguinte informação: “Barreto, Albimar – Albimar Furtado, diretor do jornal – me disse que dois agentes da Polícia Federal estiveram na sala dele para saber se você trabalha mesmo aqui. Ele confirmou que você trabalha aqui e os policiais o tranquilizaram dizendo que estava tudo bem, era só para saber se você é mesmo repórter do jornal.” E completou: “Fique tranquilo, não há problema algum...”

A informação me soou no mínimo estranha: dois caras da PF terem o trabalho de ir a um jornal só para informar a um repórter que as coisas estavam bem é meio esquisito, não é?  Pelo menos eu acho. Porque, até onde sei, não é papel da polícia procurar cidadãos, acalmá-los, dizer-lhes que está tudo bem e ir embora. Pelo que sei, polícia quando sai é para investigar ou, na pior das hipóteses, prender...

Diante de tão esquisita situação fui à sala de Albimar. Ele afirmou angelicalmente a mesma coisa que Luciano: “Não, não se preocupe: realmente eles estiveram aqui, falaram comigo, confirmei que você é do jornal, eles disseram que ‘está tudo bem’ e foram embora. Não se preocupe. Eles queriam falar com você, mas como você não estava... Mas eles disseram que está tudo bem, viu?”

Respondi: “Se você está dizendo...” e fui para a Redação preparar minhas matérias. Enquanto isso fiquei pensando: como é que dois experientes jornalistas são tão ingênuos a ponto de não perceber que havia algo a mais no ar, e pelo jeito não eram apenas mosquitos?

Enfim, diante da candura dos meus colegas dei também o caso por encerrado e fui trabalhar. Dias depois, uma surpresa: o mesmo Luciano informou, agora com cara de preocupação: “Barreto, um oficial de justiça veio aqui lhe procurar. Você está sendo processado não sei por qual crime e precisa assinar um documento oficializando que sabe do processo.”

Eu disse “o quê?!!!!” 

E ele: “É verdade.”                                                   

Pensei: “Eu num disse? Não estava tudo bem: Luciano era realmente um ingênuo e Albimar era um doido.” Mas, não sei bem por que não dei muita importância ao fato e fui redigir meus textos. Afinal, eu não havia feito nada de errado e segui em frente. Dois dias depois o oficial de justiça procurou-me novamente, eu não estava e ele se foi. Mais uns três dias e repetiu-se tudo: o sujeito me procurava e eu sempre fora, cumprindo pauta.

Dessa vez, porém, deixou uma ameaça: eu deveria dirigir-me à repartição onde ele trabalhava e assinar o documento de citação. Era isso ou o processo ia correr à minha revelia. Em suma: eu estava lascado.

Então, caiu a ficha. Sabe Kafka? Já leu O processo? Foi assim que me senti: estava sendo processado e não sabia o motivo, igualzinho ao livro. Mas, diante da mudança de quadro peguei o carro e fui procurar o tal funcionário. Encontrei-o, tomei conhecimento do crime pelo qual era acusado, assinei o papel, peguei a minha cópia da citação e fui embora. Sim: e ele ainda me deu um aperto de mão. E disse a frase fatal: “Está tudo bem.” Na verdade, era exatamente o contrário: agora eu era, literalmente, um homem na mira da lei.

E o meu crime: ter publicado uma notinha na coluna Roda Viva, de Cassiano Arruda, que estivera fora alguns dias e eu fora seu interino. A tal nota, minúscula, na parte inferior da coluna, informava a respeito do resultado de uma pesquisa sobre intenção de voto numa cidade do alto-oeste potiguar. Especificamente o crime estava no fato de que a pesquisa não havia sido registrada no Tribunal Regional Eleitoral, o que por lei é obrigatório . Eu não atentei a isso e publiquei.

Alguém, que nunca soube quem foi, havia representado contra mim a partir desse fato. Suspeito que tenha sido algum dos candidatos que ficaram em segundo e terceiro lugares.

A informação sobre a pesquisa me fora passada por Joaquim Pinheiro, um jornalista conhecido meu, mas um tipo com quem não tinha muito contato. Não lembrei de perguntar se o material fora autorizado pela Justiça para publicação, ele não tocou no assunto e deu no que deu: uma mera informação, sem qualquer propósito de beneficiar qualquer lado, estava me levando às barras do tribunal.

Mais uns dias e fui prestar depoimento à Polícia Federal. Cheguei lá e disse: “Boa tarde. Vim aqui para ser interrogado.” O recepcionista, muito atencioso, disse: “Tudo bem. Venha por aqui.” Novamente “tudo bem”. O cara entra numa fria e tudo bem.    

Pensei: por que tudo o que vem para me lascar vem precedido de um “tudo bem”? E caminhei ao lado do rapaz da PF.

Fui levado a uma grande sala, cheia de birôs, onde fui recebido por dois senhores de gravata, as mangas das camisas sociais arregaçadas. Eram dois delegados. Eu supunha que ia ser um interrogatório truculento, cheio de perguntas capciosas, mas não. Foram feitas perguntas objetivas visando saber se eu tinha interesse na eleição de alguém e se era filiado a algum partido político. Tudo nesse tom. Jogo limpo.

Sim, ao chegar já encontrei Albimar me esperando ao lado de um advogado do jornal. Tinham vindo dar-me assistência jurídica e eu nem havia pedido. Claro, o jornal tinha obrigação de me apoiar, mas eu sequer havia pensado nisso, tal a minha confiança de que nada havia feito de errado. Uns 20 anos depois, em cerimônia na UFRN, agradeci publicamente a Albimar pelo gesto. O agradecimento se deu durante o lançamento de um ebook que tratava de perfis biográficos de jornalistas, eu e ele citados no livro.

Bom, passada essa fase da PF viria a etapa em que eu seria inquirido por um juiz e um promotor. E lá fui eu, trazendo o tal colega jornalista como minha testemunha de defesa. Aí, o juiz disse: “Já li muitas das suas matérias, gosto muito das suas crônicas, mas vou ter de processá-lo, certo?”

Respondi solenemente: “Sem problema. Estamos aqui para isso, Excelência.” O magistrado seguiu um roteiro mais ou menos idêntico ao dos delegados da PF. O problema para ele é que praticamente não havia base para a acusação, a não ser a questão de a pesquisa não ter sido registrada. E as perguntas, assim, não me levaram ao canto do ringue, digamos assim.

Explico: eu não morava na cidade onde fora feita a pesquisa, não tinha ali qualquer vínculo político ou familiar, sequer conhecia os candidatos. Na verdade não conhecia ninguém lá e a notinha era graficamente insignificante: tivera uns três centímetros de altura por dois centímetros de largura, publicada no rodapé da coluna. Objetivamente: eu não tinha qualquer interesse no resultado da eleição nem nunca buscaria beneficiar a quem quer que fosse utilizando o jornal onde trabalhava.

Em minha defesa tive o cuidado de apresentar aos autos uma declaração formal do chefe do setor de circulação do jornal atestando quantos exemplares haviam sido vendidos na cidade no dia da publicação da nota: cinco. Miseravelmente cinco exemplares estavam me jogando naquela situação. Uma briga paroquiana e mesquinha tinha virado um imbróglio para mim. Cinco jornais nunca teriam a possibilidade de definir a eleição de ninguém.

O problema, na sequência dos depoimentos, foi quando o colega jornalista foi chamado a depor. O juiz jogou uma isca e ele caiu. Foi feita a seguinte pergunta: “O Sr. acha que o articulista deveria ter publicado essa nota, divulgando uma pesquisa que não tinha registro?”

Em vez de engatar uma resposta que me defendesse, ele agiu como um jogador de várzea: aquele que tem tudo para fazer o gol, a trave está aberta, o goleiro batido, mas, em vez de chutar a bola o sujeito dá um coice no chão.

Sabe o que minha testemunha disse? O seguinte: “É... pela experiência dele, né?...” Ou seja, eu deveria ter tido precaução. Eu pensei, “meu Deus, mas foi esse sujeito quem me passou a informação. Podia ter dito que me conhecia, que era sabedor de que eu jamais iria usar do jornalismo com finalidades escusas.” Mas fez a estupidez, e, por um momento, senti as coisas se complicando. Eu poderia ter revelado que fora ele a pessoa que me dera a informação sobre a tal pesquisa mas preferi aguentar o tranco. 

Eu já estava começando a pensar que ia sair dali algemado e com um saco preto na cabeça, quando o juiz encerrou o interrogatório. O promotor também fez umas perguntas, deu-se por satisfeito e aquela cena terminou. Claro que não saí algemado nem nada - são apenas ilações estilísticas para dar clima ao texto, sabe?

Dias depois saía a sentença: além do  meu advogado até o promotor pedia a minha absolvição. Às vezes comento sobre esse assunto com minha mulher e digo, brincando: “Minha filha, eu espero que os caras da PF não se arrependam de não terem me prendido e reabram o processo. Quem sabe, chega aqui em casa uma dupla de policiais federais procurando por mim, e avisando: 'Ei rapaz, fique tranquilo que a gente veio aqui só pra lhe avisar que está tudo bem...'"

 

sábado, 28 de setembro de 2024

 Às vezes posso conversar com mortos

Por Emanoel Barreto

 Às vezes posso conversar com mortos. São amigos meus, fantasmas cordiais que me chegam, noite alta, ao escritório que tenho em minha casa; assentam-se e ficam a me olhar, cobrando-me recordações - querem saber se não os esqueci. Há pouco chegou-me o Majó Theodorico Bezerra, rajado gato do mato, sertanejo, homem do velho PSD. Perguntou-me do que dele me lembrava.

Contei então que que um dia, sem que percebesse, eu o segui enquanto caminhava a esmo pelo velho Palácio Potengi. Ele, já então sem mandato, a política dobrada para sempre em seu embornal catingueiro, deambulava pelo salão nobre do belo edifício, apoiado em rústico cajado. A seu lado um jovem carrancudo e de aspecto agreste lhe servia de amparo e guia. O Majó balbuciava uma algaravia de sons sem sentido. Perguntei se se lembrava daquilo: fez que sim com a cabeça, um sorriso irônico pintado em sua boca, como que dizendo: fantasmas, ao contrário dos vivos, nunca ficam caducos.

Mas, voltemos ao assunto: eu era repórter político da Tribuna do Norte e o segui naquela caminhada. O ano em que isso aconteceu foi 1994. Ele já estava muito velho. O Imperador do Sertão andava cambaleante. O título de Imperador lhe fora concedido em 1978 pela Rede Globo, entitulando documentário de Eduardo Coutinho. Mas o Imperador não tinha mais aquele pisar rijo, de velho feito de aroeira-do-sertão. 

Ele vagava pelo salão, olhava os lustres, observava o assoalho de madeira nobre. Chegou-se a uma janela e de lá esteve olhando a Ribeira onde vivera encastelado no Grande Hotel, que dirigira há muit'anos, pagando ao Estado uma ninharia de arrendamento. 

 Depois foi a um salão menor, onde um enigmático piano repousava, mudo. Nunca entendi aquele piano no Palácio Potengi. Talvez tocasse, à noite, sonatas para a escuridão do Poder que dormia. O Majó aproximou-se do grande instrumento e percutiu uma de suas teclas. Foi o único som que ouvi daquele instrumento  em todos os anos que cobri política no Estado; a nota soou como um langor monótono, estranhamente longo, tristíssimo. Sonata e despedida do ancião que o tocara. Aquela seria a última visita do velho político  ao Potengi.

Logo depois, apoiando-se em seu acompanhante, caminhou passos tardos até a larga, imponente escada de madeira, forte passarela que dava acesso primeiro andar do Potengi, ninho do Poder no RN. Desceu a escada e perdeu-se para sempre da minha visão. Morreu dia 4 de setembro de 1994. Dois ou três dias depois da crônica que escrevi e publiquei na Tribuna a respeito daquele acontecimento. Título: “O Majó veio ver se o passado estava em dia.”

E hoje, quando a mim chegou, como outros fantasmas, que são mais relembranças que espectros, pude afinal com ele fazer a última entrevista:

- Majó, o que o senhor fazia naquele dia, lá no Palácio?

E ele, com um riso de meia-lua, olhou-me bem nos olhos e respondeu, placidamente:

- Barreto, fui homem que teve de tudo: fui a Paris e lá estive em Pigalle e no Moulin Rouge, andei pela Índia e por outros cantos do mundo. Aqui, fui de tudo: fui Majó e Imperador, mandei e desmandei nas minhas festas na fazenda Irapuru, o povo dançando com a minha banda de música. Irapuru é o pássaro que canta e Tangará, cidade também minha, é o pássaro que dança. Também mandei em Natal e mandei ali, ali mesmo, no Palácio Potengi. Sabe o que eu estava fazendo lá, Barreto? Lá, naquele dia em que você, notando que eu estava caduco, me acompanhou calado?

- Não, Majó - respondi.

- Eu estava procurando o meu passado, Barreto. Um homem tem que ser dono do seu passado. Eu estava olhando ali se o passado tinha parado no tempo. Se não tinham bulido naquelas coisas, naquele salão, naqueles cortinados, nos lustres, naquele piano, na porta que dava para o gabinete do governador. No chiado do chão de madeira. Eu estava vendo, Barreto, se o passado estava em dia, como você disse na crônica.

- E estava, Majó?

Estava, Barreto, estava. O passado estava em dia. Estava tudo no seu lugar. E outra coisa: em política não há gratidão nem reconhecimento. Em política é o acerto, é o acordo, é o dinheiro e o pé ligeiro. Em política, aprenda, o passado sempre está em dia... O passado do político adivinha o seu futuro. O que ele fez é alicerce. É coisa ficada. O que vem depois é só desejo, vontade. Pode ocorrer ou não.”

Deu boa noite e esfumaçou-se no silêncio do meu jardim. Um vento frio invadiu o escritório e me gelou a alma. Fui obrigado a beber uma dose de uísque caubói.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

 Zé da Bussu, o rei da bagaça

Por Emanoel Barreto

O jornalista Alexis Gurgel, que me ensinou as primeiras letras do jornalismo, era editor de polícia no saudoso Diário de Natal em 1974. Eu tinha poucas semanas como repórter quando dele ouvi a seguinte ordem: “Barreto, vá até o Canto do Mangue e entrevista Zé da Bussu.” Eu indaguei a respeito de quem diabo era Zé da Bussu e ele me disse que o tipo era um desordeiro conhecido nas Rocas. A minha missão seria encontrar o sujeito e fazer uma espécie de levantamento de suas, digamos, atividades.

 A kombi do jornal deixou-me no Canto do Mangue às duas da tarde e lá fui eu, de banca em banca. Cada peixeiro tentando literalmente vender o seu peixe. Parei na banca de dona Mãezinha, uma vendedora de petiscos marinhos capazes de encantar até mesmo Netuno, e perguntei: “A senhora sabe onde encontro Zé da Bussu?”

A resposta foi: “Sei, é aquele ali” e apontou um sujeito que mais parecia um muro, desses feitos de pedra. Eu já me aproximava dele quando lembrei: Alexis não mandara um fotógrafo comigo. O jeito era fazer a matéria e depois o fotógrafo que se virasse, para encontrar o cara.

“Seu Zé?”

“Sim.”

“Posso falar como senhor?”

Ele disse que tudo bem e eu me sentei com ele à mesa onde bebia uma cachaça de péssima qualidade: “Toma uma?” Respondi que não e lhe expliquei que era do Diário e queria saber de sua vida, seus feitos na desordem, suas atividades de risca-faca e tudo o mais. Eu anotava tudo, até que senti que ele não tinha mais o que dizer: prisões, desordens, enfrentamentos com a polícia, um sujeito que ele quase matou, fugas de delegacias e, agora, a aposentadoria a ser vivida nas Rocas, rondando as mulheres e a cachaça do Canto do Mangue.

Estranhei quando ele afirmou que iria parar: “Parar por quê?” Muito simples, explicou: esperava que aparecesse um escritor para fazer um livro sobre sua vida. Ele acreditava que ganharia um bom dinheiro contando a sua história e garantiu sinceramente acreditar que o tal escritor seria eu. Primeiro levantando a peteca com a matéria no Diário, depois com o livro que eu, acreditava, iria escrever.

Expliquei que aquela matéria era apenas um registro, a publicação de minhas anotações e ponto final. Deveria sair no próximo domingo – estávamos numa segunda-feira. De nada adiantou: na verdade aumentou o delírio de Bussu, que já se via em cartaz em todos os cinemas do Brasil, ou seja: além do livro um filme... Sonhava: “Já pensou o título? Acho que deve ser Zé da Bussu, o rei da bagaça! Não é mesmo? Não é mesmo?”

Disse isso, levantou-se e garantiu: “Vou fazer a maior desordem dessa zona, que é para a coisa ficar completa.” Pensei em ver dali a minutos um escarcéu de quebrar o cano, mas nada aconteceu. Ele olhou firme para mim e disse estar pensando como e quando iria botar pra quebrar.

A kombi do jornal chegou, eu voltei à redação e contei a Alexis a respeito daquele sujeito estranho. Para mim, salientei, ele não tinha nada de desordeiro; havia emendado umas histórias esquisitas e, pela forma como divagava, estava mais para doido que para bandido ou algo assim. Alexis concordou e disse para deixar a matéria para lá. Com ela, disse, pretendia iniciar uma série de histórias de marginais, gente perdida, seu sofrimento, suas desgraças, dores e desesperos. E lamentou: “Vai dar não, Barreto. Vamo saber sobre os bebos e a turma de sempre, que quase é morador das delegacias.”

Anos depois encontrei Zé da Bussu. Estava pedindo esmolas pelo centro da cidade, envelhecido e cabisbaixo. Eu o observei detidamente e lamentei seus pobres sonhos de ser o maior bandalho do mundo... Seu livro havia virado um papel velho que descartei num cesto da redação em 1974 e, pior, ele jamais ficou conhecido como Zé da Bussu, o rei da bagaça.

 

segunda-feira, 15 de julho de 2024

 E aí Frei Damião disse: 'Quereis o comunismo?'

 Por Emanoel Barreto

Certa vez fui pautado pela chefia de reportagem da Tribuna do Norte para entrevistar a venerável figura de Frei Damião, o santo do sertão, amado do povo, protegido de Deus e de Nossa Senhora, vindo da distante cidade de Bozzano, Itália, para cuidar do rebanho de sertanejos, preservar a fé e encaminhar as almas todas para o Céu.

Fui à cidade de Ceará Mirim, pouco mais de 30 minutos de Natal, onde ele se encontrava. Encontrei-o na igreja matriz. Abençoado templo povoado por imagens de santos e de anjos, querubins e serafins. A pequena e cândida figura atendia em confissão a enorme fila de mulheres cobertas por véus e envoltas em doce auréola de rezadeiras, como só as existem no Nordeste. Mulheres suadas de fé.

E eu fiquei olhando para elas. Atentei para suas bocas que fervilhavam baixinho rezas velhas, mistérios sussurrados em uma língua estranha que jamais consegui apreender desde quando, ainda menino, olhava minhas tias fervorosas diante de uma vela e de uma imagem de Nossa Senhora. Deviam ser coisas muito altas, evoladas da inefável religião dos bons, augúrios de uma vida melhor depois da morte, quem sabe o repouso calmo no regaço da Virgem.

Preste atenção na boca de uma velha rezadeira: é ali que mora a alma, tenho certeza. A minha mente de repórter, todavia, estava preocupada com algo mais urgente e menos devoto: o tempo. Eu tinha hora para voltar à Tribuna do Norte e fazer o meu texto.

Com alguma insistência junto a um auxiliar do beato consegui parar a confissão e ele me atendeu. Confesso, sem trocadilho algum, que nem mesmo sei o que perguntei. Mas, o que mais valia era relatar o encontro dulcíssimo do pastor com o seu rebanho, captar o ambiente angélico, a doçura do olhar do Frei, seus conselhos e penitências passadas àquelas pessoas sacras e pias.

Saí, confesso novamente, com a alma cheia de alguma candura - certamente meu coração de repórter feio e mau tocado pelos instantes miríficos. Assim, de volta à Redação, encontro com outra figura humana portentosa: Dorian Jorge Freire, diretor de Redação. Católico, minúsculo de tamanho mas enorme em sabedoria e humanismo.

Terminado o meu texto, Dorian, que também tinha grande espírito de humor, contou-me o seguinte: Certa vez, Barreto, Frei Damião estava com suas missões pelos sertões distantes. Fazia sua costumeira pregação contra o pecado, a devassidão e o adultério. Defendia o sacramento do matrimônio e dizia que sem ser casado homem e mulher eram "como o cachorro e a cachorra, o touro e a vaca." . Advertia também a todos contra o perigo do comunismo vermelho e ateu.

E dizia: "O comunismo é pecado grande, pecado mortal. O comunismo é a besta-fera que vem para desafiar o Evangelho. O comunismo é o perigo até mesmo para as mocinhas." O povo olhava e ouvia tudo, pasmo, temeroso, pronto para fugir, caso o comunismo chegasse a qualquer instante.

Parecia até que o comunismo estava por ali, pronto para desferir seu bote. Afinal, Frei Damião fez sua última invectiva contra o comunismo periculoso e bradou ao povo sertanejo, como se fora um novo Conselheiro: "E então, quereis o comunismo?, e o contrito povo, procissão desvelada e crente, respondeu piedosamente, em coro monumental "Quereis!"

 

sexta-feira, 12 de julho de 2024

 “Quando eu morrer quero um enterro muito bonito”

Por Emanoel Barreto

Já escrevi aqui a respeito de uma mulher conhecida como Maria Saberé. E disse também que isso não é um apelido: é uma  biografia, implica que alguém leva uma vida vulgar, pobre, desembestada, pessoa grosseira, bruta e braba. Os apelidos populares, muitas vezes formados por palavras que sequer existem no vocabulário, têm esse condão: passam uma ideia bastante exata de quem neles seja representado. Veja só: o que você pensaria de um sujeito apelidado de Zé da Buranca?

Mas eu dizia algo a respeito de Maria Saberé, notória bêbada e arruaceira com, digamos assim, atuação em botequins e qualquer buraco de ponta de rua onde se vendesse cachaça e tira-gosto de má qualidade. Rocas e Ribeira eram seu território de caça. Era uma arruaceira de primeira grandeza e, quando podia, desmontava no murro e no chute quem estivesse pela frente. Fosse um sargentão de radiopatrulha, um passante inofensivo ou a pessoa com quem tivesse iniciado um quebra-pau pelo motivo mais besta do mundo.

Muitas vezes estive com ela em delegacias, anotando suas, posso dizer atividades? Que seja. Mas, os feitos de Saberé não davam notícia. Eram acontecimentos menores, brutalidade de segunda categoria, bobeira. Tudo o que ela fazia, desde uma troca de tapas até o mais consumado quebra-quebra, era editado numa coluna chamada Ronda, onde se noticiavam acontecimentos menores do então chamado submundo do crime. Ela estava nesse catálogo.

Quando eu chegava a uma delegacia falava com o delegado ou, em sua falta, algum investigador para saber de novidades. Nem sempre havia algo de grande, porque em polícia ou a coisa é realmente pesada, inversamente não passa de discussão entre vizinhos ou, no caso específico, uma, vejamos, batalha de Maria Saberé.

Certa vez,  numa delegacia nas Rocas, ela havia acabado de chegar. Tinha aprontado no Canto do Mangue: queria levar um peixe, garantindo que “depois pagaria”. Quando recebeu um não como resposta simplesmente pegou o peixe e fez dele um inesperado cacetete que se espatifou na cara do vendedor. Uma radiopatrulha passava e ela se deu mal.

Depois que foi acondicionada numa cela fui até ela, que abriu um sorriso desse tamanho ao me ver: “Você sempre chega na hora certa. Acho que a gente devia assinar um contrato. Eu saio na Ronda, o jornal de paga! Eu saio na Ronda, o jornal de paga! Bom pra mim, bom pro Diário.”

Anotei o que ela falou a respeito de sua mais recente desordem, ela com a voz embargada pelo álcool. Queria levar o peixe, não dei certo, abriu o pau. De repente, disse: “Eu queria saber o que o jornal vai fazer quando todos os desordeiros, o pessoal da bagunça se acabar. Quando morrer todo mundo ou quando ninguém mais quiser briga e porrada jornal se acaba, rapaz! Jornal se acaba! Quem sustenta jornal é os pobre, que não tem o que fazer e lasca o murro a fazer merda pra compensar essa vida!”

Surpreendido pelo raciocínio tosco, mas com raízes firmes na realidade dos que estão nos arrabaldes da vida, ainda ouvi quando ela desabafou: “Quando eu morrer, por tudo o que já fiz de grito e pancada, quero ter um enterro muito bonito. Quero um caixaozão bem grande e muita gente chorando... Quero um enterro muito bonito...”

Não sei se ela já morreu. Mas tenho minhas suspeitas que sim. E de uma coisa tenho certeza: se já morreu não teve um enterro muito bonito.

 

  

 

 

 

sábado, 10 de fevereiro de 2024

 Bolsonaro e a viagem de urubu

Por Emanoel Barreto

A sequência de atos e desatinos de Bolsonaro ao longo do seu período presidencial, e tudo o que experienciou e perpetrou em sua fase pós-derrota, especialmente as tramas e a tentativa de golpe, ocorreram em tempo histórico brevíssimo. Não deve ser pequeno o espanto de seus fãs, que, num inesperado instante, viram seu mito ser  despejado da presidência para a condição de pessoa em vias de prisão.

Ele queria ser inspetor de quarteirão do país e virou um tipo suspeito, a polícia tem o seu prontuário.

Despreparado, inculto, insolente, Bolsonaro mobilizou a seu favor e em torno de si o que havia de pior na política brasileira, bem como atraiu as mais atrasadas formas de manifestação ideológica, incluindo-se aí religiosos ultraconservadores. Não esqueceu o poderio das Forças Armadas, convicto de que ainda estávamos nos idos de 1964, e cooptou chefes militares predispostos a insanidades golpistas.

Envolto em seus próprios sonhos, devaneios caóticos e escuras intenções de poder, agiu como o personagem chapliniano no filme O ditador, na performance do globo terrestre. O demencial personagem deleitava-se, brincando com um volumoso globo de plástico, objeto do seu fetiche de mandão. O tiranete deliciava-se em inebriante alucinação fazendo o balão flutuar, girar, subir e descer ao seu toque: afinal, estava ali o seu mundo, havia ali uma coisa sua, preciosa e passiva.

A cena tem a duração de dois minutos e doze segundos, até que o globo estoura. O lamentável potentado percebe então, chocado, que seu balão nada mais era que uma bola de encher, não a Terra, o planeta, o mundo que queria dominar. Ele havia criado e cultuado uma ilusão, dando-lhe forma e consistência numa esfera frágil, que logo se desfez: pá!

Bolsonaro também viveu seus dois minutos e doze segundos de devaneio como presidente, mito, chefe, ídolo, líder, grande condutor, maioral, comandante, guia, mestre e prócer. A lista de atributos seria enorme para expressar a monumental figura de homem da pátria que pretendia encarnar e ser.

Deus, pátria e família formavam o tripé de sua aventura, que afinal deu no que deu. E hoje todo o seu público, seus fãs, então desvairados e agora perplexos, lastimam o desastre do seu ditador de cinema mudo e devem estar dizendo: “Ohhhhhhhhhhhhhh!”

E se lamentam ao  descobrir que a realidade não é uma projeção daquilo que se deseja, mas um complexo de fatos desafiantes. A realidade não é um devaneio, a realidade pode ser um tombo.

Os acontecimentos em torno de Bolsonaro precipitam-se, seu passaporte já foi recolhido e as autoridades dão prosseguimento aos atos jurídicos que certamente vão resultar em sua prisão.

Olhando-se tudo o que produziu e a forma troncha como agiu enquanto ator social, pode-se muito bem fazer uma comparação. Pode-se imaginar alguém que acredita cegamente numa afirmativa que parece ser verdadeira, quando em verdade trata-se de um equívoco.

Suponha que alguém vai fazer uma longa viagem e para tanto precisa embarcar num avião. Ao comentar com um amigo a respeito de sua partida o sujeito lhe diz: “Não viaje de avião: viaje de urubu, pois nunca de ouviu dizer: ‘Um urubu caiu matando todos os seus ocupantes.’”

Bolsonaro acreditou nessa conversa e embarcou num urubu. Deu no que deu. Tenho dito.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

 Mulher morta, nua e lavada de sangue: 75 golpes de faca

 Por Emanoel Barreto

 Foi assim: Diário de Natal, coisa de uma e meia da tarde. Ano, 1975. Não lembro o mês. Toca o telefone. Sozinho na redação atendi. Entra em cena a voz de Domício Ramalho, veterano repórter de polícia então cobrindo crimes na esfera do judiciário. Ele disse: “Barreto, corra lá nas Rocas que mataram um. Não sei como foi, somente me informaram que mataram um lá nas Rocas, Canto do Mangue. Vá lá e apure.”

“Tá ok, vou lá” –  respondi.

 Ora, Domício era escolado, sabia muito. Na editoria de polícia ele formava dupla imbatível com Pepe dos Santos, o maioral de todos nós, cheio de fontes e informações. Eu era um foca que sequer estudava jornalismo; fazia o curso de direito. Reunindo todas as forças da minha grandiosa inexperiência chamei um motorista, entrei na Kombi da redação e desci a ladeira; a Kombi só faltava voar. Como fotógrafo tinha comigo Iremar Araújo, o Bárbaro. Tinha pouco mais de metro e meio de altura mas era o cão em matéria de polícia. Costumava dizer, filosofal:

"O cara pra andar comigo tem que ter razão e preconceito. E amarrar as pontas da camisa, que é pra não voar."

 Expliquei rapidamente o que acontecia, Bárbaro acenou tranquilamente que sim com a cabeça; afinal, tinha razão e preconceito. Fomos. Chegando ao Canto do Mangue a Kombi parou. Saltamos e surgiu aí o primeiro desafio do foca: o local do crime estava isolado com cordas. Estava assim de soldados da PM, que não deixavam ninguém passar. Mas, para mim, era passar ou perder a matéria. Matéria exclusiva. Então, compreendi: era fazer ou fazer. 

 Saí da Kombi quase correndo, levantei a corda, passei por baixo dela e, erguendo a mão esquerda, como se ali estivesse mostrando uma carteira de identificação jornalística, gritei: “Diário de Natal!”

 Deu certo: minha invisível carteirada e o então poderoso nome do jornal fizeram um guarda ceder espaço àquele projeto de repórter. Outro soldado fez um gesto de assentimento e eu ingressei no território do crime. Bárbaro estava parado, tinha sido retido pelos policiais. Em meio àquela minha surpreendente performance frente aos  policiais, berrei: “Entra, Bárbaro! Passa! Diz que é do Diário!” 

 O pingo de gente tomou coragem, enfiou-se por baixo da corda e logo estava a meu lado. Metemos o pé e chegamos ao local do crime. Vi ali a mais terrível cena da minha vida: técnicos do Itep pegavam um corpo de mulher nua e jogavam-no num caixão feito de lata. Seguravam pelos pés e pelas mãos, balançavam para um lado e para o outro para dar impulso, até atirá-lo no sinistro ataúde.

 A mulher, de um moreno escuro, cabelos muito negros, exibia sua horrenda nudez e o corpo gotejava sangue. Nada menos que 75 facadas a haviam abatido, segundo apurei. Eu via aquilo e fazia anotações rápidas, o olhar atento esquadrinhando a desgraça. Bárbaro feito um louco fotografando tudo. 

 Entramos no local onde havia acontecido o crime. Na verdade era um estabelecimento comercial, creio que de venda de pescado, algo assim. Alguém disse: “Veja como ficou o banheiro” – e imediatamente fomos para lá.

 Quando entramos tudo parecia cenário de filme de terror: o chão ensopado de sangue, as paredes azulejadas literalmente pintadas de vermelho. Marcas de mãos impressas nas paredes, numa cena de extrema brutalidade, davam indício de como aquela agressão fora perpetrada. 

 A tragédia tinha começado assim: a mulher era amante da um bandido conhecido como Mansinho, que cumpria pena na hoje extinta Colônia Penal João Chaves, o Caldeirão do Diabo. Mansinho tivera permissão para visitá-la e tinha vindo a Natal escoltado por um soldado, apenas um soldado. Agora, veja só a trama, digna de Nelson Rodrigues: o soldado era também amante da amante de Mansinho. Sentiu o peso, não? O esquisito é o fato de que o presidiário havia sido liberado para fazer uma visita íntima, quando o usual seria que a mulher fosse até o presídio. Mas no Brasil as coisas são como são. E lá se foi Mansinho, visitar sua adorável femme.

 Manhoso que só, ele fazia de conta que nao sabia do romance entre ela e o soldado, mas, intimamente, tinha tudo premeditado. E como vingança é prato que se come frio esperou que o militar estivesse de serviço e pediu licença para visitar a mulher, certo de que o rival seria seu, digamos, vigilante: pelo que tinha em mente despejaria sobre a mulher o peso do seu ódio no momento apropriado sem que o outro nada pudesse fazer. O plano do assassinato estava pronto, inscrito ponto a ponto em sua mente raivosa e ciumenta.

 Vaja como tudo aconteceu: chegando às Rocas o soldado o deixou entrar na peixaria e ser recebido pela mulher. O local do crime tinha uma daquelas portas corrediças, típicas de estabelecimentos comerciais. Mansinho entrou, puxou para baixo a porta, fechou-a e trancou-se por dentro. Ele e ela foram ao banheiro, despiram-se e ali deu-se o ato libidinoso. Em seguida discussão e luta. Faca é coisa que não falta numa peixaria. Mansinho começou a brutalidade golpe após golpe. Ferimentos profundos, talhos por todo o corpo. 

 A mulher gritava, louca e nua, e ele trabalhava firme, cevando nela o ódio amealhado e borbulhante. Daí as marcas de mãos nas paredes do banheiro, o chão empapado em sangue. Ela tentava fugir em desespero inútil. Do lado de fora o policial nada podia fazer: batia na porta, chutava, tentava inutilmente levantar o aço da porta que protegia e amparava o crime. A mulher lutou o que pôde, até que a vida lhe fugiu. O corpo tombou pesado. 

 A fera das Rocas, satisfeita, pegou uma escada de pedreiro que inexplicavelmente estava por lá, subiu, saltou o muro dos fundos do estabelecimento e escapou. Os vizinhos ouviram o tumulto e chamaram a polícia. Os soldados vieram, arrombaram a porta e encontraram a desgraça feita.

Como notícia ruim anda ligeiro Domício soube, me acionou e aí começou tudo o que você acabou de ler. De lá para cá já se foram 49 anos. Passaram-se como quem passa um minuto olhando o mundo de esguelha.

 Enfim, era isso: o Diário de Natal hoje é saudade, não lembro o nome da mulher e nunca mais ouvi falar de Mansinho.