sexta-feira, 12 de julho de 2024

 “Quando eu morrer quero um enterro muito bonito”

Por Emanoel Barreto

Já escrevi aqui a respeito de uma mulher conhecida como Maria Saberé. E disse também que isso não é um apelido: é uma  biografia, implica que alguém leva uma vida vulgar, pobre, desembestada, pessoa grosseira, bruta e braba. Os apelidos populares, muitas vezes formados por palavras que sequer existem no vocabulário, têm esse condão: passam uma ideia bastante exata de quem neles seja representado. Veja só: o que você pensaria de um sujeito apelidado de Zé da Buranca?

Mas eu dizia algo a respeito de Maria Saberé, notória bêbada e arruaceira com, digamos assim, atuação em botequins e qualquer buraco de ponta de rua onde se vendesse cachaça e tira-gosto de má qualidade. Rocas e Ribeira eram seu território de caça. Era uma arruaceira de primeira grandeza e, quando podia, desmontava no murro e no chute quem estivesse pela frente. Fosse um sargentão de radiopatrulha, um passante inofensivo ou a pessoa com quem tivesse iniciado um quebra-pau pelo motivo mais besta do mundo.

Muitas vezes estive com ela em delegacias, anotando suas, posso dizer atividades? Que seja. Mas, os feitos de Saberé não davam notícia. Eram acontecimentos menores, brutalidade de segunda categoria, bobeira. Tudo o que ela fazia, desde uma troca de tapas até o mais consumado quebra-quebra, era editado numa coluna chamada Ronda, onde se noticiavam acontecimentos menores do então chamado submundo do crime. Ela estava nesse catálogo.

Quando eu chegava a uma delegacia falava com o delegado ou, em sua falta, algum investigador para saber de novidades. Nem sempre havia algo de grande, porque em polícia ou a coisa é realmente pesada, inversamente não passa de discussão entre vizinhos ou, no caso específico, uma, vejamos, batalha de Maria Saberé.

Certa vez,  numa delegacia nas Rocas, ela havia acabado de chegar. Tinha aprontado no Canto do Mangue: queria levar um peixe, garantindo que “depois pagaria”. Quando recebeu um não como resposta simplesmente pegou o peixe e fez dele um inesperado cacetete que se espatifou na cara do vendedor. Uma radiopatrulha passava e ela se deu mal.

Depois que foi acondicionada numa cela fui até ela, que abriu um sorriso desse tamanho ao me ver: “Você sempre chega na hora certa. Acho que a gente devia assinar um contrato. Eu saio na Ronda, o jornal de paga! Eu saio na Ronda, o jornal de paga! Bom pra mim, bom pro Diário.”

Anotei o que ela falou a respeito de sua mais recente desordem, ela com a voz embargada pelo álcool. Queria levar o peixe, não dei certo, abriu o pau. De repente, disse: “Eu queria saber o que o jornal vai fazer quando todos os desordeiros, o pessoal da bagunça se acabar. Quando morrer todo mundo ou quando ninguém mais quiser briga e porrada jornal se acaba, rapaz! Jornal se acaba! Quem sustenta jornal é os pobre, que não tem o que fazer e lasca o murro a fazer merda pra compensar essa vida!”

Surpreendido pelo raciocínio tosco, mas com raízes firmes na realidade dos que estão nos arrabaldes da vida, ainda ouvi quando ela desabafou: “Quando eu morrer, por tudo o que já fiz de grito e pancada, quero ter um enterro muito bonito. Quero um caixaozão bem grande e muita gente chorando... Quero um enterro muito bonito...”

Não sei se ela já morreu. Mas tenho minhas suspeitas que sim. E de uma coisa tenho certeza: se já morreu não teve um enterro muito bonito.

 

  

 

 

 

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