Mulher
morta, nua e lavada de sangue: 75 golpes de faca
Por
Emanoel Barreto
Foi
assim: Diário de Natal, coisa de uma e meia da tarde. Ano, 1975. Não lembro o
mês. Toca o telefone. Sozinho na redação atendi. Entra em cena a voz de Domício
Ramalho, veterano repórter de polícia então cobrindo crimes na esfera do
judiciário. Ele disse: “Barreto, corra lá nas Rocas que mataram um. Não sei
como foi, somente me informaram que mataram um lá nas Rocas, Canto do Mangue.
Vá lá e apure.”
“Tá
ok, vou lá” – respondi.
Ora,
Domício era escolado, sabia muito. Na editoria de polícia ele formava dupla
imbatível com Pepe dos Santos, o maioral de todos nós, cheio de fontes e
informações. Eu era um foca que sequer estudava jornalismo; fazia o curso de
direito. Reunindo todas as forças da minha grandiosa inexperiência chamei um
motorista, entrei na Kombi da redação e desci a ladeira; a Kombi só faltava
voar. Como fotógrafo tinha comigo Iremar Araújo, o Bárbaro. Tinha pouco mais de
metro e meio de altura mas era o cão em matéria de polícia. Costumava dizer, filosofal:
"O cara pra andar comigo tem que ter razão e preconceito. E amarrar as pontas da
camisa, que é pra não voar."
Expliquei
rapidamente o que acontecia, Bárbaro acenou tranquilamente que sim com a cabeça; afinal, tinha razão e preconceito. Fomos. Chegando ao
Canto do Mangue a Kombi parou. Saltamos e surgiu aí o primeiro desafio do foca:
o local do crime estava isolado com cordas. Estava assim de soldados da PM, que
não deixavam ninguém passar. Mas, para mim, era passar ou perder a matéria.
Matéria exclusiva. Então, compreendi: era fazer ou fazer.
Saí
da Kombi quase correndo, levantei a corda, passei por baixo dela e, erguendo
a mão esquerda, como se ali estivesse mostrando uma carteira de identificação
jornalística, gritei: “Diário de Natal!”
Deu
certo: minha invisível carteirada e o então poderoso nome do jornal fizeram um
guarda ceder espaço àquele projeto de repórter. Outro soldado fez um gesto de
assentimento e eu ingressei no território do crime. Bárbaro estava parado,
tinha sido retido pelos policiais. Em meio àquela minha surpreendente performance
frente aos policiais, berrei: “Entra,
Bárbaro! Passa! Diz que é do Diário!”
O
pingo de gente tomou coragem, enfiou-se por baixo da corda e logo estava a meu
lado. Metemos o pé e chegamos ao local do crime. Vi ali a mais terrível cena da
minha vida: técnicos do Itep pegavam um corpo de mulher nua e jogavam-no num
caixão feito de lata. Seguravam pelos pés e pelas mãos, balançavam para um lado
e para o outro para dar impulso, até atirá-lo no sinistro ataúde.
A
mulher, de um moreno escuro, cabelos muito negros, exibia sua horrenda nudez e
o corpo gotejava sangue. Nada menos que 75 facadas a haviam abatido, segundo
apurei. Eu via aquilo e fazia anotações rápidas, o olhar atento esquadrinhando
a desgraça. Bárbaro feito um louco fotografando tudo.
Entramos
no local onde havia acontecido o crime. Na verdade era um estabelecimento
comercial, creio que de venda de pescado, algo assim. Alguém disse: “Veja como
ficou o banheiro” – e imediatamente fomos para lá.
Quando
entramos tudo parecia cenário de filme de terror: o chão ensopado de sangue, as
paredes azulejadas literalmente pintadas de vermelho. Marcas de mãos impressas nas
paredes, numa cena de extrema brutalidade, davam indício de como aquela agressão fora
perpetrada.
A
tragédia tinha começado assim: a mulher era amante da um bandido conhecido como
Mansinho, que cumpria pena na hoje extinta Colônia Penal João Chaves, o
Caldeirão do Diabo. Mansinho tivera permissão para visitá-la e tinha vindo a
Natal escoltado por um soldado, apenas um soldado. Agora, veja só a
trama, digna de Nelson Rodrigues: o soldado era também amante da amante de
Mansinho. Sentiu o peso, não? O esquisito é o fato de que o presidiário havia
sido liberado para fazer uma visita íntima, quando o usual seria que a mulher
fosse até o presídio. Mas no Brasil as coisas são como são. E lá se foi
Mansinho, visitar sua adorável femme.
Manhoso
que só, ele fazia de conta que nao sabia do romance entre ela e o soldado, mas,
intimamente, tinha tudo premeditado. E como vingança é prato que se come frio esperou que o militar estivesse de serviço e pediu licença para visitar a
mulher, certo de que o rival seria seu, digamos, vigilante: pelo que tinha em
mente despejaria sobre a mulher o peso do seu ódio no momento apropriado sem
que o outro nada pudesse fazer. O plano do assassinato estava pronto, inscrito ponto a
ponto em sua mente raivosa e ciumenta.
Vaja
como tudo aconteceu: chegando às Rocas o soldado o deixou entrar na peixaria e
ser recebido pela mulher. O local do crime tinha uma daquelas portas corrediças,
típicas de estabelecimentos comerciais. Mansinho entrou, puxou para baixo a
porta, fechou-a e trancou-se por dentro. Ele e ela foram ao banheiro, despiram-se
e ali deu-se o ato libidinoso. Em seguida discussão e luta. Faca é coisa que
não falta numa peixaria. Mansinho começou a brutalidade golpe após golpe.
Ferimentos profundos, talhos por todo o corpo.
A
mulher gritava, louca e nua, e ele trabalhava firme, cevando nela o ódio
amealhado e borbulhante. Daí as marcas de mãos nas paredes do banheiro, o chão
empapado em sangue. Ela tentava fugir em desespero inútil. Do lado de fora o
policial nada podia fazer: batia na porta, chutava, tentava inutilmente
levantar o aço da porta que protegia e amparava o crime. A mulher lutou o que
pôde, até que a vida lhe fugiu. O corpo tombou pesado.
A
fera das Rocas, satisfeita, pegou uma escada de pedreiro que inexplicavelmente
estava por lá, subiu, saltou o muro dos fundos do estabelecimento e escapou. Os
vizinhos ouviram o tumulto e chamaram a polícia. Os soldados vieram, arrombaram
a porta e encontraram a desgraça feita.
Como
notícia ruim anda ligeiro Domício soube, me acionou e aí começou tudo o que
você acabou de ler. De lá para cá já se foram 49 anos. Passaram-se como quem
passa um minuto olhando o mundo de esguelha.
Enfim,
era isso: o Diário de Natal hoje é saudade, não lembro o nome da mulher e nunca
mais ouvi falar de Mansinho.
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