quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

 Mulher morta, nua e lavada de sangue: 75 golpes de faca

 Por Emanoel Barreto

 Foi assim: Diário de Natal, coisa de uma e meia da tarde. Ano, 1975. Não lembro o mês. Toca o telefone. Sozinho na redação atendi. Entra em cena a voz de Domício Ramalho, veterano repórter de polícia então cobrindo crimes na esfera do judiciário. Ele disse: “Barreto, corra lá nas Rocas que mataram um. Não sei como foi, somente me informaram que mataram um lá nas Rocas, Canto do Mangue. Vá lá e apure.”

“Tá ok, vou lá” –  respondi.

 Ora, Domício era escolado, sabia muito. Na editoria de polícia ele formava dupla imbatível com Pepe dos Santos, o maioral de todos nós, cheio de fontes e informações. Eu era um foca que sequer estudava jornalismo; fazia o curso de direito. Reunindo todas as forças da minha grandiosa inexperiência chamei um motorista, entrei na Kombi da redação e desci a ladeira; a Kombi só faltava voar. Como fotógrafo tinha comigo Iremar Araújo, o Bárbaro. Tinha pouco mais de metro e meio de altura mas era o cão em matéria de polícia. Costumava dizer, filosofal:

"O cara pra andar comigo tem que ter razão e preconceito. E amarrar as pontas da camisa, que é pra não voar."

 Expliquei rapidamente o que acontecia, Bárbaro acenou tranquilamente que sim com a cabeça; afinal, tinha razão e preconceito. Fomos. Chegando ao Canto do Mangue a Kombi parou. Saltamos e surgiu aí o primeiro desafio do foca: o local do crime estava isolado com cordas. Estava assim de soldados da PM, que não deixavam ninguém passar. Mas, para mim, era passar ou perder a matéria. Matéria exclusiva. Então, compreendi: era fazer ou fazer. 

 Saí da Kombi quase correndo, levantei a corda, passei por baixo dela e, erguendo a mão esquerda, como se ali estivesse mostrando uma carteira de identificação jornalística, gritei: “Diário de Natal!”

 Deu certo: minha invisível carteirada e o então poderoso nome do jornal fizeram um guarda ceder espaço àquele projeto de repórter. Outro soldado fez um gesto de assentimento e eu ingressei no território do crime. Bárbaro estava parado, tinha sido retido pelos policiais. Em meio àquela minha surpreendente performance frente aos  policiais, berrei: “Entra, Bárbaro! Passa! Diz que é do Diário!” 

 O pingo de gente tomou coragem, enfiou-se por baixo da corda e logo estava a meu lado. Metemos o pé e chegamos ao local do crime. Vi ali a mais terrível cena da minha vida: técnicos do Itep pegavam um corpo de mulher nua e jogavam-no num caixão feito de lata. Seguravam pelos pés e pelas mãos, balançavam para um lado e para o outro para dar impulso, até atirá-lo no sinistro ataúde.

 A mulher, de um moreno escuro, cabelos muito negros, exibia sua horrenda nudez e o corpo gotejava sangue. Nada menos que 75 facadas a haviam abatido, segundo apurei. Eu via aquilo e fazia anotações rápidas, o olhar atento esquadrinhando a desgraça. Bárbaro feito um louco fotografando tudo. 

 Entramos no local onde havia acontecido o crime. Na verdade era um estabelecimento comercial, creio que de venda de pescado, algo assim. Alguém disse: “Veja como ficou o banheiro” – e imediatamente fomos para lá.

 Quando entramos tudo parecia cenário de filme de terror: o chão ensopado de sangue, as paredes azulejadas literalmente pintadas de vermelho. Marcas de mãos impressas nas paredes, numa cena de extrema brutalidade, davam indício de como aquela agressão fora perpetrada. 

 A tragédia tinha começado assim: a mulher era amante da um bandido conhecido como Mansinho, que cumpria pena na hoje extinta Colônia Penal João Chaves, o Caldeirão do Diabo. Mansinho tivera permissão para visitá-la e tinha vindo a Natal escoltado por um soldado, apenas um soldado. Agora, veja só a trama, digna de Nelson Rodrigues: o soldado era também amante da amante de Mansinho. Sentiu o peso, não? O esquisito é o fato de que o presidiário havia sido liberado para fazer uma visita íntima, quando o usual seria que a mulher fosse até o presídio. Mas no Brasil as coisas são como são. E lá se foi Mansinho, visitar sua adorável femme.

 Manhoso que só, ele fazia de conta que nao sabia do romance entre ela e o soldado, mas, intimamente, tinha tudo premeditado. E como vingança é prato que se come frio esperou que o militar estivesse de serviço e pediu licença para visitar a mulher, certo de que o rival seria seu, digamos, vigilante: pelo que tinha em mente despejaria sobre a mulher o peso do seu ódio no momento apropriado sem que o outro nada pudesse fazer. O plano do assassinato estava pronto, inscrito ponto a ponto em sua mente raivosa e ciumenta.

 Vaja como tudo aconteceu: chegando às Rocas o soldado o deixou entrar na peixaria e ser recebido pela mulher. O local do crime tinha uma daquelas portas corrediças, típicas de estabelecimentos comerciais. Mansinho entrou, puxou para baixo a porta, fechou-a e trancou-se por dentro. Ele e ela foram ao banheiro, despiram-se e ali deu-se o ato libidinoso. Em seguida discussão e luta. Faca é coisa que não falta numa peixaria. Mansinho começou a brutalidade golpe após golpe. Ferimentos profundos, talhos por todo o corpo. 

 A mulher gritava, louca e nua, e ele trabalhava firme, cevando nela o ódio amealhado e borbulhante. Daí as marcas de mãos nas paredes do banheiro, o chão empapado em sangue. Ela tentava fugir em desespero inútil. Do lado de fora o policial nada podia fazer: batia na porta, chutava, tentava inutilmente levantar o aço da porta que protegia e amparava o crime. A mulher lutou o que pôde, até que a vida lhe fugiu. O corpo tombou pesado. 

 A fera das Rocas, satisfeita, pegou uma escada de pedreiro que inexplicavelmente estava por lá, subiu, saltou o muro dos fundos do estabelecimento e escapou. Os vizinhos ouviram o tumulto e chamaram a polícia. Os soldados vieram, arrombaram a porta e encontraram a desgraça feita.

Como notícia ruim anda ligeiro Domício soube, me acionou e aí começou tudo o que você acabou de ler. De lá para cá já se foram 49 anos. Passaram-se como quem passa um minuto olhando o mundo de esguelha.

 Enfim, era isso: o Diário de Natal hoje é saudade, não lembro o nome da mulher e nunca mais ouvi falar de Mansinho.  

 

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