Cascudo delirava e dizia: “Você é um dos engenheiros mais jovens?”
Por Emanoel Barreto
Quando a Tribuna do
Norte passou a offset, a 13 de outubro de 1979, a direção do Segundo Caderno
ficou comigo, chefiando uma equipe que tinha entre seus talentos o colunista
Franklin Jorge e uma jovem aluna de jornalismo, Christiana Coeli, filha da
poeta e jornalista Miriam Coeli e do jornalista Celso da Silveira. Quer dizer,
a menina tinha a quem puxar. Porém, se faltava experiência, sobravam empenho e
vontade de fazer jornal.
O caderno era
dedicado a cultura e serviço, e funcionava como uma redação à parte: tinha
repórteres, fotógrafo e um bamba na ilustração, o cartunista Aucides, que
também diagramava. Contava ainda com a presença de um articulista especializado
em música popular brasileira, de nome pomposo e grandiloquente: Odosvaldo
Portugal Neiva. Tinha vindo não sei de onde e fora contratado pelo jornal. Produzia
enxurradas de textos que chegavam a ocupar quase uma página.
Pois bem, certo dia
Christiana foi pautada para fazer uma entrevista com o mestre Luís da Câmara
Cascudo sobre algum tema de cultura popular. Pois bem: ela saiu e voltou. Como
uma flecha.
Fiquei surpreso com a
rapidez, mas ela me explicou por que a matéria não havia dado certo: “Barreto,
não deu para entrevistar o professor porque ele estava com uma dor de cabeça
fortíssima, estava tonto e mal se aguentava em pé.”
Foi o suficiente para
disparar em mim o alerta vermelho. Eu respondi: “Christiana, uma dor de cabeça
desse tipo, em mim, preocupa a minha família e talvez algumas pessoas amigas.
Só isso. Mas uma dor de cabeça dessas em Cascudo, com ele não podendo nem ao
menos ficar de pé, preocupa o Estado inteiro ou quase isso."
Ato contínuo, segui com um fotógrafo para o estacionamento do jornal em busca
de um carro. Não havia carro. Chamei uns táxis, ninguém parou. Então, saí correndo
da Tribuna até a casa do professor; o fotógrafo, esbaforido, correndo atrás.
Quem conhece Natal sabe que a casa onde morava Cascudo fica razoavelmente próxima
à Tribuna do Norte, na Ribeira. Mas, ir até lá, correndo, já são outros
quinhentos.
Bom, mas cheguei à casa do mestre. Fui atendido por Dona Dahlia, sua mulher,
que me disse: “Barreto, venha cá, depressa. Me ajude a cuidar de Cascudo, que
ele não está bem."
Mandei que o fotógrafo esperasse fora da casa e fui com ela ao quarto onde o professor
estava. Fiz isso a fim de respeitar sua privacidade. Eu não queria um drama
sensacional. Somente chamaria o fotógrafo caso o bom senso assim o indicasse, e
sob permissão de Dona Dahlia.
Quando entrei no quarto onde ele estava vi a seguinte cena: Cascudo estava de
pijama, deitado numa cama imensa, os olhos semicerrados; delirava. Dona Dahlia
estava quase em pânico. Parecia não haver mais ninguém em casa. Ela lamentava o
calor. Temia que isso fosse deixá-lo ainda pior. Disse-me: “Segure a cabeça
dele enquanto dou os comprimidos.” Levantei a cabeça do professor e
esperei que ela trouxesse os medicamentos.
Ele não me reconheceu
e disse: “Quem é você? Você é um dos mais jovens, não é? É um dos engenheiros?”
A pergunta deu-me a dimensão exata da situação. Senti que tinha de agir com
muita prudência pois ali, mesmo sendo um jornalista era também uma pessoa que
estava ajudando a prestar socorro a ninguém menos que Luís da Câmara Cascudo.
Sintetizando: era preciso um respeito sagrado.
Mas, respondendo à pergunta dele, eu disse: “Sim professor, eu sou um dos mais
jovens. Sou um dos engenheiros. Vim aqui para ajudar.”
Ele continuou a dizer, agora baixinho, coisas que eu não compreendia. Observei
os esforços dedicados de Dona Dahlia nos cuidados com o marido. Ela trouxe
enormes, redondos e vermelhos comprimidos que ele engolia um a um, deitado.
Creio que o total foi de quatro comprimidos. A água era servida por ela
num copo grande.
Ele tomou a medicação, fez mais alguns comentários sem sentido e reclinou a
cabeça, dormindo em seguida. Ao mesmo tempo em que ajudava no atendimento eu
anotava mentalmente os nomes dos comprimidos, observando os rótulos das caixas
onde estavam os frascos. Como fiz uma espécie de jornalismo participante, ou
seja, integrei a cena do começo ao fim, tinha plenas condições de relatar o
fato.
Dona Dahlia me agradeceu, eu dei uma última olhada no mestre e saí do quarto.
Perguntei a ela pelo menos três vezes se poderia publicar a matéria e ela disse
que sim. Voltei ao jornal sem uma foto e sem qualquer anotação, mas com a notícia
toda na cabeça.
O assunto era sério e
devia ser tratado com grande contenção no texto. Fiz uma matéria seca, direta,
de forma a não passar ao leitor a impressão de que Cascudo estava à beira da
morte e entreguei o texto à editoria de Geral, pois, como era uma notícia do cotidiano,
não era tema do Segundo Caderno.
Horas depois, todavia, a família de Cascudo recuava e chegava à direção do
jornal um pedido para nada fosse publicado; disso fui informado. O texto foi sobrestado
e perdeu-se o registro a quente daquele momento intenso. Detalhe: o texto tinha
apenas meia lauda. Não alardeava nenhuma doença terrível, não apregoava nenhum
infortúnio, nem mencionava os detalhes que conto agora...
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