segunda-feira, 6 de março de 2023

 Cascudo delirava e dizia: “Você é um dos engenheiros mais jovens?”

Por Emanoel Barreto

Quando a Tribuna do Norte passou a offset, a 13 de outubro de 1979, a direção do Segundo Caderno ficou comigo, chefiando uma equipe que tinha entre seus talentos o colunista Franklin Jorge e uma jovem aluna de jornalismo, Christiana Coeli, filha da poeta e jornalista Miriam Coeli e do jornalista Celso da Silveira. Quer dizer, a menina tinha a quem puxar. Porém, se faltava experiência, sobravam empenho e vontade de fazer jornal.

O caderno era dedicado a cultura e serviço, e funcionava como uma redação à parte: tinha repórteres, fotógrafo e um bamba na ilustração, o cartunista Aucides, que também diagramava. Contava ainda com a presença de um articulista especializado em música popular brasileira, de nome pomposo e grandiloquente: Odosvaldo Portugal Neiva. Tinha vindo não sei de onde e fora contratado pelo jornal. Produzia enxurradas de textos que chegavam a ocupar quase uma página.

Pois bem, certo dia Christiana foi pautada para fazer uma entrevista com o mestre Luís da Câmara Cascudo sobre algum tema de cultura popular. Pois bem: ela saiu e voltou. Como uma flecha.

Fiquei surpreso com a rapidez, mas ela me explicou por que a matéria não havia dado certo: “Barreto, não deu para entrevistar o professor porque ele estava com uma dor de cabeça fortíssima, estava tonto e mal se aguentava em pé.”

Foi o suficiente para disparar em mim o alerta vermelho. Eu respondi: “Christiana, uma dor de cabeça desse tipo, em mim, preocupa a minha família e talvez algumas pessoas amigas. Só isso. Mas uma dor de cabeça dessas em Cascudo, com ele não podendo nem ao menos ficar de pé, preocupa o Estado inteiro ou quase isso."
 
Ato contínuo, segui com um fotógrafo para o estacionamento do jornal em busca de um carro. Não havia carro. Chamei uns táxis, ninguém parou. Então, saí correndo da Tribuna até a casa do professor; o fotógrafo, esbaforido, correndo atrás. Quem conhece Natal sabe que a casa onde morava Cascudo fica razoavelmente próxima à Tribuna do Norte, na Ribeira. Mas, ir até lá, correndo, já são outros quinhentos.

Bom, mas cheguei à casa do mestre. Fui atendido por Dona Dahlia, sua mulher, que me disse: “Barreto, venha cá, depressa. Me ajude a cuidar de Cascudo, que ele não está bem."

Mandei que o fotógrafo esperasse fora da casa e fui com ela ao quarto onde o professor estava. Fiz isso a fim de respeitar sua privacidade. Eu não queria um drama sensacional. Somente chamaria o fotógrafo caso o bom senso assim o indicasse, e sob permissão de Dona Dahlia.

Quando entrei no quarto onde ele estava vi a seguinte cena: Cascudo estava de pijama, deitado numa cama imensa, os olhos semicerrados; delirava. Dona Dahlia estava quase em pânico. Parecia não haver mais ninguém em casa. Ela lamentava o calor. Temia que isso fosse deixá-lo ainda pior. Disse-me: “Segure a cabeça dele enquanto dou os comprimidos.” Levantei a cabeça do professor e esperei que ela trouxesse os medicamentos.

Ele não me reconheceu e disse: “Quem é você? Você é um dos mais jovens, não é? É um dos engenheiros?”

A pergunta deu-me a dimensão exata da situação. Senti que tinha de agir com muita prudência pois ali, mesmo sendo um jornalista era também uma pessoa que estava ajudando a prestar socorro a ninguém menos que Luís da Câmara Cascudo. Sintetizando: era preciso um respeito sagrado.

Mas, respondendo à pergunta dele, eu disse: “Sim professor, eu sou um dos mais jovens. Sou um dos engenheiros. Vim aqui para ajudar.”

Ele continuou a dizer, agora baixinho, coisas que eu não compreendia. Observei os esforços dedicados de Dona Dahlia nos cuidados com o marido. Ela trouxe enormes, redondos e vermelhos comprimidos que ele engolia um a um, deitado. Creio que o total foi de quatro comprimidos. A água era servida por ela num copo grande.

Ele tomou a medicação, fez mais alguns comentários sem sentido e reclinou a cabeça, dormindo em seguida. Ao mesmo tempo em que ajudava no atendimento eu anotava mentalmente os nomes dos comprimidos, observando os rótulos das caixas onde estavam os frascos. Como fiz uma espécie de jornalismo participante, ou seja, integrei a cena do começo ao fim, tinha plenas condições de relatar o fato.

Dona Dahlia me agradeceu, eu dei uma última olhada no mestre e saí do quarto. Perguntei a ela pelo menos três vezes se poderia publicar a matéria e ela disse que sim. Voltei ao jornal sem uma foto e sem qualquer anotação, mas com a notícia toda na cabeça. 

O assunto era sério e devia ser tratado com grande contenção no texto. Fiz uma matéria seca, direta, de forma a não passar ao leitor a impressão de que Cascudo estava à beira da morte e entreguei o texto à editoria de Geral, pois, como era uma notícia do cotidiano, não era tema do Segundo Caderno. 

 
Horas depois, todavia, a família de Cascudo recuava e chegava à direção do jornal um pedido para nada fosse publicado; disso fui informado. O texto foi sobrestado e perdeu-se o registro a quente daquele momento intenso. Detalhe: o texto tinha apenas meia lauda. Não alardeava nenhuma doença terrível, não apregoava nenhum infortúnio, nem mencionava os detalhes que conto agora...

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