quinta-feira, 9 de março de 2023

 como nos últimos dias tenho escrito muito sobre Luís da Câmara Cascudo aproveitei para fazer o resgate de texto do jornalista Audálio Dantas, que entrevistou o professor. Segue na íntegra. – Emanoel Barreto

Câmara Cascudo e aquela do papagaio

AUDÁLIO DANTAS

Na manhã de 18 de junho de 1970 ainda se viam nas ruas de Natal uns restos dos festejos da véspera pela vitória da seleção brasileira nas semifinais da Copa do Mundo, no México, sobre a seleção do Uruguai, por 3 a 1. Grupos vinham da zona do porto, embandeirados, em direção ao centro da cidade, cantando "Pra Frente, Brasil", uma espécie de hino que teria sido sugerido pela ditadura militar. 

Ao passar pelo casarão em que vivia Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), numa rua da Cidade Alta, um bêbedo enrolado numa bandeira brasileira se destacou do grupo e gritou: "Desça, professor. Venha festejar com a gente. Enfiamos três no Uruguai!". 

O professor, Luís da Câmara Cascudo, era uma espécie de monumento vivo da cidade. Eu acabara de ser recebido em sua casa, um elegante chalé, construído no início do século 20. Ele foi até a uma janela, acenou para o grupo e voltou, aos risos: "Eles nem imaginam, mas eu nunca assisti a uma partida de futebol". 
Futebol, uma paixão brasileira, era um dos temas que eu tinha anotado para a entrevista que deveria fazer com ele para a revista "Realidade". O assunto estava quente, conforme acabavam de demonstrar os grupos que passavam festejando. Um bom começo de conversa, mas Câmara Cascudo, um sábio, tinha muito o que conversar, além do futebol. 

E eu, muito o que perguntar, pois a reportagem que me coubera fazer trataria das paixões do brasileiro. Cascudo era o homem certo para responder sobre o assunto. 

Para começar, ele tratou de me deixar à vontade, acho que por ter percebido em mim uma ponta de ansiedade. Afinal, eu estava diante de um dos intelectuais mais importantes do país, especialista em várias matérias -história, antropologia, folclore, etnografia-, autor de mais de cem livros. 

Mas ele disse, como se fosse um igual: "Eu também fui nego de jornal". Começara no jornalismo muito cedo, aos 19 anos, em "A Imprensa", de propriedade de seu pai. E, sabe como é, "a gente começa e não larga mais; dizem até que é uma cachaça". 

Trabalhou também em outros jornais, "A República" e o "Diário de Natal", publicando artigos diários. Nos anos 1960 já havia publicado quase 2.000 textos. 

Nossa conversa se estendeu por mais de duas horas. Aos 71 anos, Cascudo falava com o entusiasmo de um menino, às vezes inflamado ao mencionar, antes das paixões, as qualidades do brasileiro. Em alguns momentos, quase discursava e, como professor que era, estendia-se em explicações. 

Várias vezes, ao tentar explicar alguma questão mais complicada, quase chegava a se irritar, mas logo amansava a voz. Por exemplo, ao ser perguntado sobre a alimentação dos brasileiros. "Não tenho como resumir o que estudei durante 30 anos e que está contido em dois volumes de um livro", respondeu, referindo-se à sua "História da Alimentação no Brasil" (1967). 

Mas continuou a conversa, exaltando a capacidade de adaptação do brasileiro. O futebol, que naqueles dias mexia com o país inteiro, paixão que levava milhões a torcer pelo tricampeonato, foi inventado pelos ingleses, mas aqui virou mania nacional. 
Enquanto na Inglaterra era mais um esporte, aqui tomou conta da alma do povo. Da alma e dos pés dos moleques que improvisam dribles em terrenos baldios. Mas não é só improviso, não. 

Foi difícil evitar o individualismo no jogo, mas os nossos atletas se adaptaram às técnicas de conjunto. "Para muitos deles, tirar a bola do pé e passar para outro, renunciando a uma jogada individual, era como emprestar a mulher, mas terminaram cedendo, em benefício da alegria do gol, que é do time em campo e da arquibancada e se esparrama pelo país inteiro", analisou. 

A fala, as lições de Cascudo se estendiam sobre paixões e, sobretudo, qualidades que ele exaltava nos brasileiros. Por exemplo, a improvisação que muitas vezes se sobrepõe à tecnologia. 

Citou como exemplo a chegada a Natal, durante a Segunda Guerra, de máquinas escavadeiras, trazidas pelos americanos. Para cuidar delas, um monte de técnicos, especialistas em seus mistérios. 
Não demorou para que mulatos raquíticos passassem a dominar os segredos dos equipamentos, manobrando-os com destreza. Viraram senhores da máquina. "Seria o famoso jeitinho brasileiro?", perguntei. Resposta: "No caso, a inteligência supria a técnica, impedindo que o cabra fosse condenado à especialização". 

A entrevista terminaria com uma história de papagaio. Cascudo pediu a ajuda de sua mulher, Dahlia. "Conte aí a versão brasileira da história de Chapeuzinho Vermelho." A versão, informou ela, é invenção de uma neta de cinco anos, que se impressionara com o triste destino da avó de Chapeuzinho. 


Deu um jeito e passou a contar assim: o lobo bateu na porta, a avó se preparou para abrir, mas o papagaio da casa avisou: "Não abra não; é o Lobo Mau".

Conclusão de Cascudo: "Coisa de brasileiro. Onde é que Perrault ia arrumar um papagaio tão sabido?". 


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