como nos últimos dias tenho escrito muito sobre Luís da Câmara Cascudo aproveitei para fazer o resgate de texto do jornalista Audálio Dantas, que entrevistou o professor. Segue na íntegra. – Emanoel Barreto
Câmara Cascudo e aquela do
papagaio
AUDÁLIO DANTAS
Na manhã
de 18 de junho de 1970 ainda se viam nas ruas de Natal uns restos dos festejos
da véspera pela vitória da seleção brasileira nas semifinais da Copa do Mundo,
no México, sobre a seleção do Uruguai, por 3 a 1. Grupos vinham da zona do
porto, embandeirados, em direção ao centro da cidade, cantando "Pra Frente,
Brasil", uma espécie de hino que teria sido sugerido pela ditadura
militar.
Ao passar
pelo casarão em que vivia Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), numa rua da
Cidade Alta, um bêbedo enrolado numa bandeira brasileira se destacou do grupo e
gritou: "Desça, professor. Venha festejar com a gente. Enfiamos três no
Uruguai!".
O
professor, Luís da Câmara Cascudo, era uma espécie de monumento vivo da cidade.
Eu acabara de ser recebido em sua casa, um elegante chalé, construído no início
do século 20. Ele foi até a uma janela, acenou para o grupo e voltou, aos
risos: "Eles nem imaginam, mas eu nunca assisti a uma partida de
futebol".
Futebol, uma paixão brasileira, era um dos temas que eu tinha anotado para a
entrevista que deveria fazer com ele para a revista "Realidade". O
assunto estava quente, conforme acabavam de demonstrar os grupos que passavam
festejando. Um bom começo de conversa, mas Câmara Cascudo, um sábio, tinha
muito o que conversar, além do futebol.
E eu,
muito o que perguntar, pois a reportagem que me coubera fazer trataria das
paixões do brasileiro. Cascudo era o homem certo para responder sobre o
assunto.
Para
começar, ele tratou de me deixar à vontade, acho que por ter percebido em mim
uma ponta de ansiedade. Afinal, eu estava diante de um dos intelectuais mais
importantes do país, especialista em várias matérias -história, antropologia,
folclore, etnografia-, autor de mais de cem livros.
Mas ele
disse, como se fosse um igual: "Eu também fui nego de jornal".
Começara no jornalismo muito cedo, aos 19 anos, em "A Imprensa", de
propriedade de seu pai. E, sabe como é, "a gente começa e não larga mais;
dizem até que é uma cachaça".
Trabalhou
também em outros jornais, "A República" e o "Diário de
Natal", publicando artigos diários. Nos anos 1960 já havia publicado quase
2.000 textos.
Nossa
conversa se estendeu por mais de duas horas. Aos 71 anos, Cascudo falava com o
entusiasmo de um menino, às vezes inflamado ao mencionar, antes das paixões, as
qualidades do brasileiro. Em alguns momentos, quase discursava e, como
professor que era, estendia-se em explicações.
Várias
vezes, ao tentar explicar alguma questão mais complicada, quase chegava a se
irritar, mas logo amansava a voz. Por exemplo, ao ser perguntado sobre a
alimentação dos brasileiros. "Não tenho como resumir o que estudei durante
30 anos e que está contido em dois volumes de um livro", respondeu,
referindo-se à sua "História da Alimentação no Brasil" (1967).
Mas
continuou a conversa, exaltando a capacidade de adaptação do brasileiro. O
futebol, que naqueles dias mexia com o país inteiro, paixão que levava milhões
a torcer pelo tricampeonato, foi inventado pelos ingleses, mas aqui virou mania
nacional.
Enquanto na Inglaterra era mais um esporte, aqui tomou conta da alma do povo.
Da alma e dos pés dos moleques que improvisam dribles em terrenos baldios. Mas
não é só improviso, não.
Foi
difícil evitar o individualismo no jogo, mas os nossos atletas se adaptaram às
técnicas de conjunto. "Para muitos deles, tirar a bola do pé e passar para
outro, renunciando a uma jogada individual, era como emprestar a mulher, mas
terminaram cedendo, em benefício da alegria do gol, que é do time em campo e da
arquibancada e se esparrama pelo país inteiro", analisou.
A fala,
as lições de Cascudo se estendiam sobre paixões e, sobretudo, qualidades que
ele exaltava nos brasileiros. Por exemplo, a improvisação que muitas vezes se
sobrepõe à tecnologia.
Citou
como exemplo a chegada a Natal, durante a Segunda Guerra, de máquinas
escavadeiras, trazidas pelos americanos. Para cuidar delas, um monte de
técnicos, especialistas em seus mistérios.
Não demorou para que mulatos raquíticos passassem a dominar os segredos dos
equipamentos, manobrando-os com destreza. Viraram senhores da máquina.
"Seria o famoso jeitinho brasileiro?", perguntei. Resposta: "No
caso, a inteligência supria a técnica, impedindo que o cabra fosse condenado à
especialização".
A
entrevista terminaria com uma história de papagaio. Cascudo pediu a ajuda de
sua mulher, Dahlia. "Conte aí a versão brasileira da história de
Chapeuzinho Vermelho." A versão, informou ela, é invenção de uma neta de
cinco anos, que se impressionara com o triste destino da avó de
Chapeuzinho.
Deu um jeito e passou a contar assim: o lobo bateu na porta, a avó se preparou
para abrir, mas o papagaio da casa avisou: "Não abra não; é o Lobo
Mau".
Conclusão
de Cascudo: "Coisa de brasileiro. Onde é que Perrault ia arrumar um
papagaio tão sabido?".
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