domingo, 5 de março de 2023

Minhas conversas com Cascudo, quando ele ensinava: “Todo homem é digno do seu tempo”

 Por Emanoel Barreto

 Conversar com Cascudo era descobrir um tempo velho passando à minha frente. Era mergulhar na história arcaica escrita pelo povo em suas vivências, eternamente sertão. Era virar páginas e páginas inteiras de cores, fandangos, jangadas, bichos e gentes; vozes de acá, nascidas ibéricas ou africanas. Conversar com Cascudo era perscrutar a vida no seu mais íntimo significado de coisa humana e bela, humana e triste – humana, humana, humana...

Conversar com Cascudo eram tardes alongadas, quando ele me ensinava, envolto na densa nuvem azulada do charuto: “Barreto, todo homem é digno do seu tempo.” Ou seja: nós construímos nosso tempo – vamos arcar com as consequências. E completava: “Plantar é colher...”

Conversar com Cascudo era descobrir um homem feito de sabedoria. Conversar com Cascudo era viajar o chão do sertão, a brenha secreta da caatinga; cruviana esfriando o passo do cavalo do vaqueiro em noite de plenilúnio: arrepio com medo de lobisomem.

Conversar com Cascudo era alumbrar-se com as visagens, os cantos do povo, os aboios, a comida da terra; caçuás, canga e cantiga de botar menino para dormir. Conversar com Cascudo era ouvir o tempo severo do Nordeste em sua eterna e serena espera pela chuva criadeira.

Conversar com Cascudo era ouvir o sábio que se confessava “um provinciano incurável”, morador desta Natal tão dele e tão pequena. Conversar com Cascudo agora é uma saudade, quando a vida já não anda em cavalo baixeiro e estamos todos à mercê e ao léu do não-sei-mais.

Cascudo não está mais aqui, já não tenho quem me mande “baixar noutro terreiro” após cada entrevista. Mas nunca esqueci quando ele uma vez me disse: “Vá baixar noutro terreiro, Barreto; mas, quando quiser, pode voltar...”

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