terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O dom de iludir

Foto: divulgação Rede Globo

O dom de iludir
Emanoel Barreto
Os poderosos grupos de mídia de todo o mundo, utilizando-se dos valores advindos da mentalidade mediana do chamado homem comum, cujos valores são advindos do compartilhamento de uma certa cotidianidade, instituiram ações de massa que de alguma forma refletem, mesmo que de forma perversa, essa cotidianidade onde o social e o existencial se encontram entremesclados. 

A perversidade está na manipulação dos valores do senso comum em espetáculos como o BBB da Rede Globo, cuja hegemonia impõe ao social e aos concorrentes a realização dessas tragédias cifradas, que entorpecem corações e mentes. Os BBBs são como avatares do homem comum, que se projeta e se identifica, em catarse, nos personagens em que cada um dos participantes do programa se transforma. 

A realidade cifrada, na metáfora dessas ações de massa, gera conflitos que muito bem sugerem o dia-a-dia: disputas, convergência e divergência de interesses, ansiedade por mudar de vida, lágrimas e desolações, injustiças, pequenas tragédias ante a iminência de perda de realização de um sonho: "Oh, my God!" 

De alguma forma cada um de nós, em nossos próprios grupos e classes, é seu próprio heroi. Cada um, no seu íntimo, sabe dos embates e dramas que enfrenta para viver e sobreviver. Isso está magnificamente dito na letra de "Dom de iludir", de Caetano Veloso, quando diz: "Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é." Ou seja: o ser humano, em processo de comunicação consigo mesmo, se descobre como sujeito e objeto de seus próprios desígnios, perplexidades, auto-perdão e auto-bem-querer. E para viver é preciso trabalhar. E para viver é preciso sofrer. 

É disso que o BBB se aproveita: ao apresentar a um grupo selecionado a oportunidade de ganhar 1 milhão e 500 mil reais, dá a todos e a cada um a opordunidade de "subir na vida". E isso de maneira quase mágica, sem que para isso precise do exercício dessa ação social chamada trabalho, cujo exercício, para ter retribuição, exige tempo e vida. Muito tempo, muita vida...
Ocorre que, para tanto, os participantes se submetem a todo um processo de humilhação, como humilhante também é, para brutal maioria dos trabalhadores, humilhante ser trabalhador - imprensado em ônibus lotados, achincalhado por um sistema de saúde pública nefasto, atemorizado pela violência urbana e políticos corruptos também, eles autores de uma certa forma de violência. 

A análise de um programa como o BBB exigiria, para sua exaustão, um longo estudo, tal a simbologia que tem do mundo real. O mais lamentável é que, aos poucos, o programa ganha contornos de instituição, um evento aguardado, cuja sazonalidade chega a ser ansiada pelas pessoas. 

Afinal elas, inconscientemente, sentem-se ali presentificadas e percebem, de forma difusa e gasosa, que suas vidas estão sendo vividas e representadas - até mesmo em sentido teatral -, pelo grupo dos BBBs, que se sujeita ao açoite do programa para se tornar famoso por quinze minutos. A Globo tem, realmente, o dom de iludir. A eles e a todos nós.

PENSANDO EM VOZ ALTA
Acho que vou querer querer. Mas, quando quero, realizar não posso. Mesmo assim, não posso não poder achar que acho que não acho que o mundo seja de todo mal.

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