segunda-feira, 27 de março de 2006

Quando a terra é ferida

A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás;
mas só pode ser vivida olhando-se para a frente.
( Soren Kierkegaard, 1813-1855)

A Via Costeira, antes de ser o que é hoje, a grande e esfuziante estrada que alegra até mesmo a mais renitente depressão, tinha, por incrível que pareça, o mesmo traçado básico de hoje, só que em meio a um cerrado matagal. Era um caminho estreito, difícil de percorrer: a pé ou de carro.


Pois bem: certo dia, acompanhado por amigos, um conhecido meu começou a trilhar a senda da descoberta. Andou, andou, andou, partindo de Areia Preta, superou todos os percalços do caminho até que, - choque! -, descobriu um brutal, violento, inaceitável trabalho de devastação e retirada de terra, formando já uma gigantesca cratera.

Sabe onde isso ficava? Ficava, ou melhor, fica (pois a devastação não foi reconstituída), ao lado de uma curva bem fechada. Vá pela Via Costeira e você verá: são uns paredões enormes, vermelhos, uma grande cratera, escavada a pá e máquinas pesadas. Meu amigo parou, viu e, dias depois, contou-me.

Pedi a Wellington Medeiros, chefe de reportagem da Tribuna do Norte, para colocar o assunto em pauta e, numa bela, tarde tomei o rumo do perigo. Foi um trabalhão: a Kombi do jornal mal se sustinha sobre as rodas, tantas e tão inclinadas as curvas, tantos e tão traiçoeiros os areais movediços.

Cheguei afinal e, mal dava para acreditar: cerca de dez caminhões moviam-se com grande facilidade na larguíssima cratera, todos com muitos trabalhadores enlouquecidos em sua tarefa de destruir a natureza. Era barro de primeiríssima qualidade, para construções de luxo em Natal.

Desci da Kombi em companhia do fotógrafo e logo dezenas de olhos raivosos se cravaram na dupla. Para facilitar o trabalho, mandei que ele fosse fotografando para um lado, que eu entrevistava pelo outro. Se um fosse capturado, daria tempo do outro se meter na Kombi e fugir. Depois, era usar a força da direção do jornal, para ver se livrava quem estivesse preso, ou melhor, sob seqüestro.

Mas, não sei porquê, não houve, nada, nenhuma manifestação maior de agressividade, a não ser respostas dada de má vontade, caras fechadas, bocas rugindo monossílabos, expressões ruminando horrores. Mas, dava pena ver: os enormes paredões, lavrados de barro vermelho, como que sangravam seu sangue de terra, exibindo as feridas da brutalidade.

De um jeito ou de outro consegui apurar quem era o manda-chuva: um atravessador qualquer, que literalmente havia descoberto aquela mina e a estava vendendo em retalhos, em caminhões, a ricaços de Natal.

Os caminhões e escavadeiras moviam-se cruelmente sobre aquele corpo da natureza, pisoteando suas entranhas de forma brutal, sumariamente indigna, extensamente estúpida. Ficamos cerca de meia hora apurando o assunto e saímos quando um sujeito, responsável pelos trabalhos, ia chegando e, aí sim, demonstrando disposições belicosas.

Aproximou-se, perguntou o que era aquilo, eu expliquei que era uma reportagem. Ele sabia que estava errado e não tentou impedir a saída da equipe. Amaldiçoou-nos com um olhar fervente e sumiu no meio da buraqueira.

A matéria foi publicada dia seguinte. Dois ou três dias depois, o que acontece? Uma reunião entre os Comandos da Marinha (a área é terreno de Marinha), Polícia Federal e outras entidades federais e pronto: todos foram impedidos de trabalhar na Via Costeira e banidos para sempre de sua infernal missão de matar aquela linda natureza.

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