quarta-feira, 29 de março de 2006

As minhas duas mortes

A crase não foi feita
para humilhar ninguém.”
( Poeta Ferreira Gullar)


A jornalista minha colega olhou para mim com cara de espanto, botou a mão na boca, arregalou os olhos. De repente, inverteu a marcha de suas emoções confusas e começou a rir. Correu para mim e me abraçou.

Parei, aceitei o abraço da amiga, que se manifestava sincero e forte, carinhoso e solidário, de uma solidariedade que eu não esperava pois, pelo menos para mim, não havia comigo qualquer resquício de carência ou necessidade de apoio e portanto aquela recepção me parecia sem sentido.

- O que houve? - balbuciei.
- Ora, você não soube? - respondeu, interrogativa.
Não, de jeito algum, eu sabia o que havia acontecido. Só que, “o que havia acontecido”, era bem simples: um boato havia varrido alguns setores do nosso jornalismo, dando conta da... minha "prematura e lamentável morte".


Só que ninguém, nem mesmo a minha amiga, sabia me explicar do que eu havia morrido: se do coração, de raiva, isquemia, atropelamento, trombose, hepatite, inflamação de garganta, topada ou qualquer outra causa, incluindo assalto ou doença do sono.

Mas, que eu tinha morrido, tinha morrido. E pronto. Por isso, a expressão de alegria, equivalente a ter reencontrado um ressurrecto. Mas... como ela soubera da minha morte? Não se lembrava direito, mas uma outra colega havia comentado sobre isso. E com muita convicção.


Mas agora, alegria, alegria, tudo estava desfeito. E ela saiu por aí, trombeteando meu renascimento. Ufa, cumprimentei minha amiga novamente, fui embora e fiquei feliz por estar vivo.

Essa foi minha primeira morte. A outra foi assim: em finais dos anos 80, foram trasladados para Natal os restos mortais de Emanuel Bezerra, estudante morto pelo aparelho repressor do regime de 64. O rapaz fora assassinado durante sessões de tortura quando o regime, a título de impedir a ditadura do proletariado, impunha a ditadura dos privilegiados.

Aí, veja só: começaram os anúncios de que os despojos viriam para Natal, só que com um detalhe: eram os "restos mortais do estudante Emanoel Barreto.” Digo isso porque assisti a um noticiário de TV onde meu nome era citado, ouvi em rádio e li em jornal.

Claro, comecei a ficar apreensivo com a surrealista situação: teria eu já desencarnado e não saberia? Será que eu era já um fantasma a vagar entre os vivos, sem qualquer noção de que as pessoas não me viam e eu, tolamente, pensava estar entre os que respiram? Como eu me supunha vivo e acreditava não haver enlouquecido, comecei a tomar precauções.


Aqui acolá, em vários meios de comunicação, havia a inclusão do meu nome e aí temi que fosse se espalhar novamente a onda de boatos sobre mais uma morte minha. Comecei a ligar para as redações e lembrar que ele, o outro, era Emanuel Bazerra. Eu era Emanoel Barreto, se lembravam?, e que eu não, eu não havia morrido.

E assim consegui que as coisas mudassem. Meu temor era que familiares meus tomassem conhecimento da notícia. A alguns comuniquei que estava vivo e até me submeti ao teste de São Tomé: qualquer um poderia me tocar, para confirmar que eu falava a verdade.

A outros não tive tempo de comunicar que estava vivo. Milagrosamente, estes não tomaram conhecimento do noticiário. Mas afinal, para minha tranqüilidade, chegaram os restos do rapaz e ele foi sepultado, em meio a grandes demonstrações do pessoal da esquerda, lamentando o brutal assassinato daquele brasileiro. Assim, eu e ele ficamos em paz. Mas ainda hoje penso: ainda bem que não mandaram rezar a minha missa de sétimo dia...

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