quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

 Cascudo e o lobisomem

Por Emanoel Barreto

Uma das coisas que mais gostava de fazer quando repórter da editoria de Geral da Tribuna do Norte era entrevistar Luís da Câmara Cascudo; para mim Mestre Luís da Câmara Cascudo. Dali, de sua casa na grande subida da Junqueira Ayres, o Professor via o Potengi amado e descortinava todo um mundo de lendas, mistérios, cantigas e danças, credos e medos que o Homem brasileiro tem guardado dentro de si.

 Certa vez, pautado para entrevistar o Professor, passei uma bela tarde conversando. Terminamos falando exatamente sobre lendas e crendices populares. As coisas do povo, a fé do povo, o medo irracional que nos acompanha a todos e se aflora nos momentos de tensão ou insegurança.

Ele me falou do Saci Pererê; disse que o molequinho, em tempos outros, fizera medo a muitos e comparou essas épocas passadas com o tempo em que a entrevista transcorria (anos 70) e lembrou: o medo do Saci se transformara no medo da perda do emprego, no terror da altíssima inflação que então corroía o país.

Explicou o Mestre que o medo persiste na humanidade, mas se apresenta sob formas variadas dependendo do estágio em que se encontre uma certa sociedade. E vieram outras lendas: a Caipora, o Bicho Papão, a Mãe d’Água, a Boitatá, o Lobisomem, ah, o Lobisomem.

Sobre a Boitatá – me lembro como se fosse hoje – ele comentou:

“Bicho grande, cobrona que brilha de noite reluzente toda pela luz dos olhos dos bichos que já comeu. Os olhos ficam brilhando dentro da cobra, meu filho... E disso o povo tinha medo, porque nisso o povo acreditava. Porque uma boa parte do medo é construída dentro da gente.” E completou: “Hoje, a boitatá é a inflação”, e deu uma de suas gargalhadas envolto na fumaça do charuto.

Sentado em sua cadeira de espaldar alto, largos apoios para os braços, o Professor foi servido de água por Dona Dhália, sua mulher. Nisso, ele virou-se para mim e disse: “Já estou quase mandando você baixar em outro terreiro” (era com essa expressão que ele gaiatamente expulsava seus entrevistadores). E disparou de letra: “O que mais você quer saber?”

Perguntei: "O senhor acredita em Deus?", ao que ele respondeu: "Acredito em Deus, quero bem a Nossa Senhora, tenho medo de lobisomem." 

Fiquei espantado: “Professor, o senhor tem medo de lobisomem?” Sorrindo, após mais um fumarento aspirar do charuto, respondeu. E sua voz tinha um tom sombrio, como a recitar um pesado sortilégio de quem sabe de tudo. Disse:

Não, meu filho, não. Aqui dentro desta casa, sentado em minha cadeira, nesta cidade do Natal, sob a proteção das luzes que nos cercam, digo a você que não. Mas, no sertão, numa noite de lua, numa sexta-feira aziaga, a cruviana* me rondando, o vento assanhando a crina do cavalo, digo que sim. Numa hora dessas, Barreto, eu digo que sim:  sim Barreto, eu tenho medo de lobisomem. E agora, vá baixar noutro terreiro!”

·       Cruviana: vento frio das noites nordestinas. Termo hoje em desuso.

 

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