domingo, 27 de novembro de 2016

Duas fotos, uma essência







Quando a luta pela liberdade gera lucros
Emanoel Barreto


Mexendo nos arquivos do Coisas de Jornal encontrei o texto que abaixo reproduzo a título de reflexão. 
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Tornou-se bastante comum a utilização pelo establishment da memória de pessoas que lhes foram contestatárias – na busca de proveito ideológico ou econômico do próprio sistema. O caso mais evidente é Guevara, na foto imortal de Alberto Korda, em 5 de março de 1960, Cuba. A reprodução que você vê acima é da foto original, da qual foi realçada unicamente a imagem de Guevara, excluindo-se a figura do homem a seu lado. 

O guerrilheiro teve a imagem ampliada, ganhou discursividade visual, tornou-se penetrante, enigmática, desafiadora às interpretações. Expressa uma grandeza humana e trágica, um destino brotado na alma e palmilhado à força da coragem e doação. Guevara, o olhar perdido, encarnando o mito rebelde. O comandante traz um semblante crístico, revestido de aura heroicizada; o homem cara a cara com os desafios de sua existência e da sina de existir e combater.

Hoje essa foto pode ser vista em milhares de camisetas e posters em todo o mundo. Como já se distancia no tempo sua epopeia guerrilheira, muitos não sabem exatamente quem foi, o que fez, como se desenrolou o seu calvário. Mas, mesmo assim, jovens o vestem como uma figura enigmática; vestígio de algo que não compreendem, mas, maquinalmente, cultuam; é moda, é fashion. Rende lucro a tudo o que ele combateu. 

Quanto à outra foto, a de Martin Luther King, diga-se: ele, que foi um lutador pelos direitos civis dos negros americanos, certamente estaria cabisbaixo e meditando a respeito do que os seus familiares estão fazendo: como muitas fotos suas estão sendo estampadas em buttons e camisetas pelos Estados Unidos, ao lado de fotos de Obama, seus filhos, ao invés de verem nisso uma reverência à figura histórica do pai, reclamam: querem direitos de herança sobre a sua imagem, literalmente direitos autorais, querem... dinheiro, dizem os jornais. 

É sempre assim: pessoas exponenciais, revolucionárias, são transformadas em figuras icônicas de causas que historicamente já não mais se postam e não mais ameaçam o sistema. Isso se dá porque os objetivos de tais causas ou foram alcançadas, como é o caso dos direitos civis dos negros, ou não mais se justificam, como é a questão de Guevara, uma vez que a questão da luta pelos direitos dos oprimidos se faz por outras vias que não a da luta armada. 

Assim, esses vultos são anexados, indexados aos valores da sociedade de mercado e de consumo e passam a ser vendidas fotos ou outras representações suas, estimulando os apetites até mesmo de quem lhes deve respeito, como é o caso dos familiares de King. 

Mas é assim mesmo: o que é transgressão hoje, passa amanhã a ser algo institucionalizado, rende lucros, dividendos e ganância remunerada de quem sabe com isso lidar.

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