sábado, 31 de dezembro de 2011

Uma velha tipografia, uma história... Com este texto despeço-me de 2011



A história do Grão-Louco do Almofariz
Emanoel Barreto

Nobre Senhor,
Sede bem-vindo.

Não sei o que vos trouxe aqui ou se precisais de meus simples labores, visto que os tempos são outros e ambientes como este estão em desuso ou simplesmente desapareceram. O ambiente modesto onde estais , devo informar, é uma tipografia; como já disse, superada e antiga. Era a acá mesmo que tínheis vindo?

Ao que vejo, sim: era acá mesmo que tínheis vido. Entrai, pois. Sou, de profissão, tipógrafo. Aqui ainda trabalho com papel feito de trapos, sendo este o melhor que existe; digo de passagem e com certo afã. Esta profissão se me foi herdada d'um velho monge, que há muito morreu, e em seu monastério mantinha uma prensa d'onde tudo aprendi .

Mas, vinde, vinde. Vede os meus tesouros. Desculpai, a iluminação é baça; é que ainda uso velas, velas de sebo, pois este ambiente é antigo e assim o exige. É que os meus fantasmas, nobres impressores, seres pertinentes, jamais aceitaram que assim não o fosse.

Mas, eis os meus tesouros: as minhas caixas, aprumadas no cavalete. Caixa alta e caixa baixa e seus respectivos caixotins. Letras maíusculas, caixa alta; minúsculas, caixa baixa. Letras lapidadas pelos melhores artesãos de França. Letras das mais diversas e trabalhadas famílias tipográficas. Ricas, belas, expressivas. Muitas deles imprimiram Hugo, Balzac e Zola, tenho certeza. Quanta honra senhor, quanta honra, não é mesmo?

Mas, quereis algo? Alguma impressão a essa hora? Não? Apenas conhecer o que faço e como vivo? Dir-vos-ei: moro aqui, aqui vivo, aqui trabalho. Ali, minha enxerga, donde me alcanço estirado, altas horas da noite. Mais adiante, um velho e pequeno fogão. Ao lado da cama é onde guardo os meus andrajos.

E o que imprimo? Tolices, senhor, tolices. Como em tempos quase já imemoriais lanço ao papel corantos, avisos, gazetas. Neles conto histórias fabulosas: o dragão que surgiu do mar e devorou toda uma aldeia pesqueira; flamejante mulhar que voa em vassoura e atormenta alguma vila perdida em confins, batalhas de grandes cavaleiros, histórias de damas tão gentis, versos de menestréis e viandantes, contos para adormecer crianças e coisas de monstros horrendos. De tudo o que o humano engenho inventivo já imaginou aqui nasce na força destas letras.

Se alguém ainda os compra? Não, senhor. Ninguém. Ninguém compra o que escrevo. E assim, depois de andar o dia inteiro sem adquirir sequer um só ceitil, retorno ao meu tugúrio. Antes porém, de voltar, ando por arrabaldes deserdados. Ali encontro quem me leia. Aproximam-se de mim os desprimorosos e os desvalidos, os aleijados, os tronchos, os alienados e os sem-destino, as súcias e os mandriões. Biltres e velhacos são o meu público.

A eles entrego de graça o que escrevo. E formam-se implausíveis clubes de leitura: cada um que queira ler mais alto e com entonações as estórias que redijo. E como em suas vozes noturnas tudo aquilo se torna galante e de bom feitio. Declamam e empostam os dizeres. Acendemos fogueiras, discutimos as lendas e os mitos, acreditamos em tudo o que escrevi e para nós está tudo muito bom; e após todo o falariço nos despedimos com mesuras e até amanhãs.

Volto então feliz e realizado. Chego, abro a forte porta que protege esta cave e então me tranco. Aqui vivo um silêncio antigo, pesado; silêncio que abraça e protege as coisas que ainda vou escrever.

Como?, o senhor quer um texto? Vou já, senhor, já vou compor. Demora um pouco, pois cada letra é retirada ao seu ninho, ao seu caixotim, para vir repousar na rama. Vou escrever-vos uma hstória: a história do Grão-Louco do Almofariz. O que isso quer dizer? Não, não sei: a ideia vai-me brotando aos poucos, ganha vida e dirige meus dedos. Confiai. Ficará boa a história, muito boa. Como disse, demora um pouco. Meus dedos já não têm tanta agilidade. Enquanto trabalho podeis achegar-vos ao catre e dormir. Quando acordardes, estará pronta a história. Boa noite, senhor. Boa noite. Grato por terdes vindo...

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