domingo, 2 de outubro de 2011

Em berço esplêndido

O Estadão diz que "ninguém acertou as seis dezenas do concurso 1.324 da Mega-Sena, realizado na noite de ontem, na cidade de São Jerônimo (RS). Com isso, o prêmio acumulou e pode atingir R$ 26 milhões no próximo sorteio, na quarta-feira. Os números sorteados ontem foram: 18, 29, 31, 44, 51 e 57. Segundo a Caixa Econômica Federal, 86 apostadores acertaram a Quina e levarão R$ 23,1 mil cada. Outros 5.421 apostadores acertaram a Quadra e receberão R$ 524 cada".

A notícia, em sua formulação clássica de clareza, concisão e objetividade, nada mais é do que relato. Todavia, no subtexto encontramos todo um discurso exultante, uma espécie de júbilo prévio de grande apelo ao imaginário nacional: a possibilidade mágica de, por efeito de um simples sorteio, alguém sair da situação de trabalhador para o patamar de alguém que, literalmente, não precisará mais trabalhar, submeter-se a horários, cumprir metas, enfrentar cobranças de produção. E tudo isso para, na grande maioria dos casos, receber salário mínimo no fim do mês.

Está aí o toque feiticeiro, o gesto sedutor que inverte, mais que isso subverte, valores e padrões consagrados: não será mais preciso o sofrimento para sobreviver, mas tão-somente um injustificado porque irracional momento: acertar seis números e tornar-se milionário de uma hora para outra. E tal se dá sem que se exijam conhecimentos maiores, competências técnicas, títulos ou diplomas, mas o simples marcar de um bilhete lotérico. A álea fará o resto.

Isso, de alguma forma, nos encaminha a uma situação kafkiana, absurda: se é possível viver assim, como se justificam o trabalho, a dedicação, o estudo o esforço. O absurdo da vida ganha formas intensas no imaginário nacional. Marcado pelas angústias socializadas, pelas incertezas cotidianas, pela conta quase impossível de pagar. 

E a loteria surge como toque de midas, como expressão cínica a nos dizer que esse tipo de esperteza tornada jurídica é o caminho a seguir, uma vez que numa sociedade como a nossa é realmente muito difícil, pelo trabalho, chegar-se a patamar do qual se vislumbre um momento presente de tranquilidade diária, seguida de garantia de um futuro pacífico e bondoso. 

Assim, desde a velha Loteria Federal à Mega Sena e demais jogos mantidos pelo Governo, temos a bandeira e o farol para quem navega nos mares do salário mínimo, nas filas que são dadas ao povo: marcar uns números e, acertando, deitar-se eternamente em berço esplêndido. 

Um comentário:

Anônimo disse...

Bela reflexão sobre a questão do trabalho a partir de uma notícia aparentemente sem importância, até mesmo banal, como o acúmulo de um prêmio de loteria. Parabéns. Acho que esse é o principal diferencial do blog, ou seja, observar essas pequenas coisas de jornal que, para muitos (como eu mesmo), passariam despercebidas.
Fagner