sábado, 26 de março de 2011

Dos perigos de fazer uma viagem perimetral de inspeção

Caro leitor, 

Devo dizer que encontro-me hoje no ano de 1789 e estou a serviço de empresa para a qual trabalho mas cuja finalidade operacional não tenho condições de explicar qual é, pois nunca a entendi.  Percorro algum país em viagem perimetral de inspeção. Também não sei exatamente o que isso significa, mas cumpro com meu mister da melhor forma possível: interrogo pessoas a esmo, pergunto como vai o tempo, inquiro se nasceu algum novo carneiro, busco informar-me sobre qual a idade de uma formiga, indago se um peixe pode ser segrado rei, se uma cobra pode prescrever receituário médico e coisas que tais. Como vedes, coisa jurisconsultas e altíssimas.

Anoto tudo e logo em seguida jogo as anotações fora. Em seguida a mim vem um inspetor que recolhe meus escritos, os lê e os arremessa no mato, e atrás dele vem outro e faz a mesma coisa e logo após outro, outro e outro, e isso se repete indefinidamente. Mas, atentai bem, estas foram as instruções que recebi para que fosse levada e efeito uma eficaz viagem perimetral de inspeção. Sendo assim, como cumpro com inominável prazer e desesperada ânsia este fado, creio que estou me saindo muito bem.

A carruagem em que me desloco é uma espécie de inferno ambulante, tal o calor impregnante que me acossa em meio a estrada sacolejante. Já superamos, eu e os outros infelizes viajores que cumprem comigo este périplo insano, cada um com seus motivos, chuvas que mais se assemelham às mais imponentes cachoeiras, ataques de salteadores, perseguição de matilhas e gritos de pavor de velhas devotas em lugarejos insólitos - elas emitem guinchos terríveis quando nos veem em nosso lastimável estado: roupas sujas, cabelos eriçados, botas enlameadas, olhos injetados, pensando, tais e bondosas criaturas, que somos representantes do Maldito. Velhos curas nos expulsam apresentando o crucifixo. Como medida de bom senso fugimos sem parar.

Afinal, digo-vos, aproximo-me do término de minha viagem e eis que surge o gerente geral de viagens perimetrais de inspeção e me avisa: Vais iniciar imediatamente uma viagem perimetral de inspeção, pois dizem que nos confins deste país maltas de desocupados, biltres temíveis, répobros insondáveis, ímpios impudentes e homens mal-faladores, além de néscios preguiçosos e beócios empedernidos preparam surtida contra a lei e contra ordem e, destarte, El Rey precisa de dados e números para preparar as defesas de todos os burgos.

Diante de tal quadro fugi, pois horrendo medo se apoderou de mim, inopinadamente, ao sentir que meu trabalho é cousa de louco ou de alguém a este assemelhado. Embrenhei-me na primeira e mais feroz floresta, cujas árvores têm arestas e espinhos de mais de um metro de comprimento e aliei-me ao primeiro magote de ímpios e outros banidos que encontrei. E, assim, senti-me pleno e lesto: depois desta fuga participarei de assaltos aos burgos mais solenes e preclaros, ataques a cidades ilustres e luminosas e jamais, nunca mais, farei novamente uma viagem perimetral de inspeção.

Um comentário:

Anônimo disse...

Caríssimo “Mano”.
O crivo reducionista da nossa geração, independente da análise e interpretação de texto, diria à la Carlinhos Maux: “Que viagem!”

“Dos perigos de fazer uma viagem perimetral de inspeção” me transportou aos tempos de menino sambudo, por volta dos anos 1958... 1959, nos arredores do campo do
América FC, na velha Maxaranguape.

Ao fazer o reide territorial para “roubar” manga e sapoti no sítio do seminário São Pedro, sempre que ouvia o chouto da dupla de cavalos negros que puxavam a carruagem fúnebre, com suas cortinas roxas ao vento transportando gente morta do Hospital São Lucas, pense na desabalada carreira e na danação de frutas deixadas pelo caminho!

Valeu pelo excelente texto, valeu pelo reencontro e tá valendo pela amizade sólida que remonta desde a subida da ladeira da Princesa Isabel, vindo do velho Municipal, dando uma pausa para ouvir “Mr. Motto”, com The Pops e demais sonoridades e papos.

Parabéns pelo blog e grande abraço deste velho amigo.

Graco Medeiros