segunda-feira, 21 de agosto de 2006

"Morreu, minha filha; foi Deus quem quis..."

Há momentos em
que silenciar é mentir"
Miguel de Unamuno

Li há pouco matéria no Estadão, abordando a questão do martírio sob o ponto de vista dos muçulmanos. O entendimento é de que o mártir, em sua luta contra os inimigos do islã, além de honrar a família, ainda garante aos seus um lugar no paraíso.

Isso lembrou-me uma visão de mundo entre os pobres do Nordeste, que, consolando os pais pela perda de um filho recém-nascido ou em tenra idade, chamava os pequenos defuntos de anjos, seguindo-se sempre o comentário de alguma comadre: "Tem nada não, minha filha, foi Deus quem quis."

Com isso explicava-se, no ingênuo senso comum, o final de um processo trágico de exclusão social: o menino ou menina filhos de trabalhadores despossuídos, vitimados em decorrência das péssimas condições de vida levadas por sua família.

Suponho que esse entendimento hoje não mais esteja tão arraigado aos pobres do Nordeste. Os anjos são os artistas e outras personalidades famosas e já não têm qualquer candura, muito pelo contrário, apregoam pela TV uma forma de vida hedonista, consumista e de modismos efêmeros.

Os costumes mudaram. Em vez do conformismo amparado pela religião, surgiu o desalento estimulado pelo cotidiano de privações, agora não mais no ambiente rural, mas em pleno e pulsante ambiente urbano.

Entretanto, persiste, na essência, o mal maior: as péssimas condições de vida de uma expressiva parcela da população - e isso não é coisa nordestina apenas. A pobreza e a miséria são bastante bem divididas no País. Minha abordagem quanto aos anjos foi apenas um recurso de entrada no assunto pobreza e ilusão do povo; miséria e manipulação do povo; fome e promessas ao povo, especialmente agora, no período eleitoral.

Com efeito, vivemos num país onde literalmente a condição angelical é dificilmente encontrável. O inefável, o cândido, o deslumbrar celestial, por aqui, talvez somente nas orações de alguma alma piedosa, voltada para obras sacras e pensamentos pios: no mais, trovejam e retumbam as manchetes sobre a corrupção, mas - a gente sabe, né? - nenhum dos denunciados irá para o inferno...

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