quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Coisas terríveis e palavras fortes



Os mistérios pertencem aos fantasmas
 
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Hoje encontrei-me com um amigo. Um amigo muito velho. Talvez tenha a idade de uma sequoia. Aliás, meus amigos são todos muito velhos, antigos homens-cedro que às vezes me caminham para uma conversa, algo assim. Às vezes nem falam. Pois tão velhos somos que já conhecemos todos os nossos assuntos. 
 Os nossos e os de outras partes, países distantes, terras onde, como acá, também se planejam horrores e se os praticam com gênio de milagre terroroso. Assim sabemos que, a rigor, hoje já não há mais novidades. Só um lento e clamoroso langor da vida que se repete a cada reedição de um desastre, no retorno de um furacão ou no morticínio idêntico ao seu predecessor.

Digo que sou velho e provo; por exemplo, fui menino, jovem e velho com Ramsés I e Ramsés II. Fui também menino com Marco Antônio e muito o aconselhei a não se meter com Cleópatra. Brinquei com Semíramis e, naquele tempo, como era arquiteto, fui o principal a ajudá-la a erguer os seus jardins suspensos, aquela maravilha que passeia os sonhos de quem com ela gosta de sonhar.
 Naquele tempo era assim: um homem podia nascer, crescer e viver ao lado de pessoas que seriam da sua e da próxima geração. Mistério do qual jamais busquei abalançar-me e desvendar. 
 É para isso que servem os mistérios: para funcionar como um leve devaneio, uma pluma, uma suave névoa na qual entramos mas a que não desejamos, de forma nenhuma, solver; pois, no íntimo, sabemos que o mistério é uma verdade revelada mas não dita por que é ou para que é. E é aí que reside a grandeza do mistério: ser arcano; não compreendido para iluminar a perplexidade.
 Mas hoje, suspeito, não há mais mistérios. Nada há de metafísico ou filosófico. Está tudo cibernético demais, racional demais, explicado demais para que haja mistérios a desafiar nossa busca.
 Minto: há mistérios sim, mas somente para quem deseje ser um pouco orvalho, um pouco manhã fria, um pouco silêncio, um pouco passos silenciosos numa casa habitada apenas por um casal. Aí, o mistério ainda vive; fica escondido, guardado entre antigos, avoengos pertences a que os olhos do mundo não devem ter acesso. O mistério pertence a fantasmas muito queridos, sei disso.
Mas dizia que hoje encontrara um velho amigo. Homem acomodado – aqui no sentido espanhol do termo, quer dizer, de classe média –  já criou os filhos e respira calmamente em sua vivenda ao lado da mulher.
Uma vida calma como a sombra de um jardim por onde não passa ninguém. Aproximando-se, falou-me que agora, quando já é um homem remoto e nada mais tem a temer, pois nada tem o que perder a não ser o seu resto de vida, tomou grave decisão: construirá navio, enorme nau de muitas velas e pelo menos oitenta peças-de-fogo e se fará aos mares.
Garantiu que percorrerá o Atlântico e o Pacífico, o Índico, o Glacial Ártico e o Glacial Antártico. E descobrirá, assegurou, um novo oceano. Ele entende que o Homem ainda não descobriu todo o planeta, coisa em que com ele concordo plenamente. 
Revelou-me, falando baixinho como uma pequena brisa, que esse oceano será importantíssimo para quando os povos forem fugir espavoridos dos desastres climáticos que se avizinham com a destruição lenta, programada e assassina do Planeta.
Além disso, detalhou, enquanto seu navio não fica pronto em estaleiro muito bem escondido em alguma baía ou porto seguro, anunciará desordens e grandes desgraças e fará vaticínios incontestes. Disse que proclamará sedições e grandes movimentos e inaugurará uma nova religião. Qual, não sabe ainda. Mas que ela virá, virá, tranquilizou-me. 
Mais que isso, vai exortar o povo, o povo do mundo todo, a que comece a caminhar pelas ruas munido de urinóis e que esses urinóis sejam despejados diariamente em todos os Parlamentos e que os grandes senhores e senhoras desses parlamentos sejam obrigados a fazer suas abluções matinais com todo o conteúdo que lhes for destinado. E me disse que isso é algo muito bom, no que concordei plenamente. 
Asseverou que vai ruminar horrores e gritar palavras que ninguém compreenderá. E terá o poder de conjurar raios e coriscos, choques e grandes explosões oriundos das forças dos elementos.
Enquanto assim falava os olhos do meu amigo injetavam-se de algo que se assemelhava ao que conhecemos por ódio, rancor ou vingança. Perdão: acho que estou sendo injusto: indignação era o que eu via naquele olhar irado e faiscante. Indignação justa, golpe fendente de espada.
Depois, acalmou-se. E, virando-se para mim, apascentou a minha própria indignação: "Amigo, não vamos nos apressar. Afinal, tudo de que acabo de falar é apenas mistério. Um mistério que só uns poucos, como nós, loucos e velhos, podem intuir." E saiu em direção à sua casa; uma casa feita à sombra de um jardim por onde não passa ninguém. E foi trabalhar em seu navio.

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