quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

A visita de um molusco, na verdade um deputado



Uma estranha realidade

Cansado de notar que o que chamamos de realidade reserva-nos unicamente a sazonal repetição de fatos como eleições, quando os discursos anunciam que o Paraíso está próximo, narro aqui a visita que ontem recebi do Sr. Ornitorrinco, notável e sábia criatura que teve a generosidade de chegar-se a minha oficina tipográfica. 
Segundo me disse, estou sob séria ameaça de ser preso devido a atividades de subversão e atos conspiratórios. Estranhei, pois não sou dado a conluios ou conchavos de qualquer natureza nem atento contra a lei ou contra a ordem.
Mas, para não cansar meu ocasional leitor digo que após horas de edificante e elucidativa conversa aquele bom homem retirou-se, não sem antes advertir-me novamente de que poderia ser preso a qualquer momento. 
Após sua saída voltei a trabalhar com meus tipos, compondo este coranto, quando ouço poderosas, raivosas batidas à porta.
Corri a atender àquela confusão e eis que entram uns dez escaravelhos, todos homens de má catadura e péssimos modos, que em poucos minutos me manietaram e me puseram a ferros, levando-me em seguida a uma masmorra. 
Naquele miserável ambiente estavam recolhidos outros homens, todos acusados de sedição e ódio, motim e outras desobediências.
Nenhum de nós entendeu nada daquelas acusações, a não ser quando a figura alta de um magistrado nos apareceu. Era ele um macaco-prego e se dizia de ascendência alemã, coisa muito comum a tais símios. Explicou que todos estávamos ali - sendo aquele tempo o ano de 1795 -, sob suspeição de haver inventado o computador e o telefone, a energia elétrica e outras cousas malsinadas como o automóvel e a bomba atômica.
Todos os que estavam ali recolhidos dissemos que se travava da mais pura inverdade, uma vez que tais e perigosas maravilhas somente seriam criadas muitos anos depois, conforme explicamos. Então, para minha surpresa, eis que chega o Sr. Ornitorrinco.
Tão logo adentrou àquele lúgubre ambiente apresentou-se como espião e mostrou fotografias da minha oficina, fotografias tomadas à sorrelfa, onde eu era visto preparando uma bomba atômica. E todos os demais infelizes também eram vistos em seu ambiente de trabalho criando engenhos danosos e coisas terrificantes; as fotos eram a prova maior. 
Sob o choque das fotografias ficamos perplexos uma vez que aquelas imagens eram inverídicas; sendo, claro, fruto de algum truque que desconhecíamos uma vez que sequer sabíamos da existência da arte fotográfica, que sequer fora inventada.
Em desespero pedimos para confabular, o que nos foi permitido, surgindo assim a nossa defesa: 1) nada daquilo existia; portanto, não poderíamos ser autores de tais e perigosos portentos; 2) sendo assim, deveríamos ser soltos imediatamente. 
O Sr. Ornitorrinco e o macaco-prego, homens tinhosos, rebateram. Comprovando o que diziam abriram as portas da masmorra e nos atiraram em meio ao mundo.
E o que vimos foi o que o leitor também vê: o descalabro, a loucura das ruas, o computador onde você lê este coranto. Atônitos, recuamos, voltando à masmorra. E agora, o que fazer? Não criamos nada disso mas tudo o que não criamos está aqui. Até que ponto essa irrealidade vai nos assediar?
 Sem resposta, atiramo-nos masmorra adentro. Após muito correr chegamos a uma porta. Saímos. O futuro e todo o seu horror haviam ficado para trás.
Voltei à minha tipografia a fim de terminar este texto. Mas, para meu desespero, eis que está à minha porta um novo e estranho personagem: eis que um grande, gigantesco molusco se apresenta, diz que é deputado e temo que traga algo terrível em suas palavras.



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