quinta-feira, 2 de fevereiro de 2006

Dai ao povo pão e circo

“Criança não tem título de eleitor;
tem certidão de nascimento e fome.”
(De uma mãe pobre)

Certa vez, como repórter, eu cobria a inauguração da sede de uma entidade assistencialista. Era um sábado de sol forte. Um sol que, dependendo da situação, poderia ser tido por uns como caliente e estimulante, charmoso, um sol com gosto de Jamaica. Outros, quem sabe, o chamariam de tórrido, ou como já se usou dizer, capaz de provocar um calor senegalês.

E o povo chegando, chegando, chegando, se aglomerando numa grande mancha morena e suarenta. E vieram as tais autoridades civis, militares e eclesiásticas. Os políticos falaram, os grandes empresários jactaram-se do grande serviço prestado à comunidade. Enfim, todos, cada um dos falantes cumpriu o seu papel, enaltecendo o feito, ali mostrado em cal, pedra, cimento armado e sol, mas muito sol.

Onze e meia da manhã e começou a circular cerveja servida em copo de plástico, tira-gostos grosseiros vasculhavam até o céu-da-boca das bocas famintas. Alegria, a malta suava e vibrava. Nisso, uma banda, que naquele tempo era chamada de conjunto musical, ataca seu som vibrante e seco, jogando no ar acordes vulgares.

Um sorriso enorme, um sorriso daqueles do gato risonho de Alice-no-País-das-Maravilhas achegou-se a todas as bocas: as alegres, as desdentadas, as bocas das moças bonitas e pobres. Um sorriso de ocasião, plenamente compatível com tão vulgar acontecimento.

Eu e um colega jornalista estávamos numa espécie de mezanino, dali observando a cena, quando ele comentou: “Veja, Barreto, como é fácil ter o povo na mão. Como é fácil espremer alegria dessas pessoas.”

Era já então meio dia. O sol fez rebrilhar seus melhores e mais fortes raios, inundando aqueles corpos de suor e expandindo, em cada músculo, em cada parte daqueles corpos que dançavam aquela festa na verdade tão rude, um sentimento de satisfação braçal, embora maquiada de bons pensamentos de promoção social.

E aquele povo dançou, ah!, como dançou. Dançou até enxugar de si todo aquele convescote feito sob medida para os necessitados de pão e circo.

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