domingo, 29 de janeiro de 2006

"Helenita...Helenita..."

Existem falhas que
precisam ser aperfeiçoadas.”
(Pelé)

Havia, na rodoviária velha, Ribeira, velha Ribeira, uma pobre louca que falava sozinha. Falava com seres invisíveis, pessoas que habitavam seu mundo, seu único, inacessível e paralelo mundo. Nunca consegui saber seu nome, enquanto, à noite, às vezes altas horas da noite, depois do expediente no jornal, esperava o ônibus para ir para casa.

Sozinha, sentada a um banco, cercada de pacotes mal arrumados, falava, falava muito, gesticulava, discutia, irritava-se, reclamava, pedia, e, creio, era até atendida pelos seus amigos invisíveis. Sim, pois, de vez em quando, se abria em sorrisos da mais esmerada simplicidade.


E eu ali, lendo algum jornal, mas com um olho naquela cena. A estranha, inesperada personagem, em pleno devaneio de vida, esquecida ao mundo, entretida em si mesma, pobre imagem de uma vida aparentemente em vão. Eu disse aparentemente em vão.
E vinha o frio da noite, aquela brisa da Ribeira, brisa fugitiva do Potengi, trazendo em seu corpo de nada o cheiro do mar, mar e vida, maresia, mar-Ribeira. Passavam vultos escusos, caminheiros da noite, uma ou outra radiopatrulha, vagabundos sonolentos, bêbados equilibristas. E eu, um pouco de tudo isso.

E ela falando, sozinha. Falando, falando, coitada: feliz. Calada para o mundo, alerta para si. E uma de suas amigas mais amigas, íntima, conciliatória e cúmplice era...Helenita. Sim, Helenita. Helenita, a invisível, impalpável, mas, viva. Viva para a louca, presente em sua presença.

E ela dizia: “Se acalma, Helenita. Deixa de coisa, mulher. Deixa de dizer besteira... Helenitaaaaaa....” E, gesto brusco de mão morena, dava um tapão no ombro intangível da mulher. E ria, ria, gargalhava quando a outra parecia revidar, ali, na penumbra encardida da rodoviária velha. Ali, naquele ponto de encontro das gentes noturnas.

Ah, que mundo maluco e bom, o daquela louca. E lá vinha o ônibus: pesadão, cansado, velho, luzes fracas, salão de luz mortiça, passageiros tombando de sono, cabeças balouçantes, corpos vivos pendentes de cansaço. Eu entrava no sacolejo do veículo lerdo e lá me ia, deixando para trás Helenita e a louca.

Às vezes meu instinto de repórter me chama a voltar à Ribeira para ver se ainda as encontro. Helenita eu já conheço. Sei que é estabanada, brincalhona, faceira, gosta de falar besteira, não é mesmo? Helenita eu já conheço: mas se fosse possível voltar, gostaria de saber o que a louca tem a dizer sobre o mundo de hoje. Acho que ela ia preferir ficar no mundo de Helenita.

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