sábado, 23 de dezembro de 2006

Uma crônica de Augusto Seveto

Mexendo nos meus arquivos virtuais encontrei a transcrição desta belíssima crônica de Augusto Severo Neto, escritor, poeta, homem de elegância e de talento. A transcrição fora feita por Woden Madruga. Ótima para se ler, mesmo que o tema não seja natalino. Mas o estilo e a beleza são puro encantamento, como este encantamento de natal, que teimamos, apesar de tudo, em manter brilhando na alma.

"Um sábado qualquer do mês de maio. Maio das flores e das noivas, de um tempo em que isso não significava apenas uma promoção a mais de diretores lojistas, das lojas de eletrodomésticos, dos magazines de confecções e outros como tais. Mês de maio inteiro e de vergonha, daqueles que, às vezes, ainda aparecem nos antigos filmes e nos romances de primavera e de amor.

Sendo sábado e principalmente sábado de maio, era dia de footing na Ribeira. Isso significava que a rua Doutor Barata, a rua das Virgens, a Duque de Caxias, a Tavares de Lira e principalmente a Praça Augusto Severo (cuja estátua ostentava um ar particularmente feliz), estavam floridas de mulheres bonitas, que desfilavam seus vestidos de melindrosas, suas meias de seda e seus sapatos de saltos altos e grossos, semelhantes aos das dançarinas de flamengo, até mesmo pela correia trespassada no peito do pé.

Era um colorido macio de tons pastéis, que harmonizavam com os rubans de vlours em torno do pescoço onde se costumava prender uma flor, ou terminados em laço, cujas pontas pendiam adiante e atrás, sobre as espáduas. Somava-se a isso o brilho dos pendentifs de coral encastoado em ouro; de esmalte, com o retrato do ser querido, ou ainda tipo coffret ultra pequeno, contendo uma romântica mecha de cabelos. Além disso, os colares, os anéis, as pulseiras e os brincos de pérolas, rubis, esmeraldas ou brilhantes, igualmente encastoadas em ouro.

Também naquele sábado, os homens envergavam seus melhores ternos, duques ou jaquetões, ou blazers de mescla inglesa, cinza chumbo, com calças pretas, com riscas de giz. Podia ser que estivessem ainda de calças de flanela branca ou creme bem claro, com paletó azul, tipo comodoro, com botões de metal. Meias de seda ou de fio de Escóssia, cuidadosamente estiradas pelas ligas. Sapatos de duas cores (branco e marrom), ou então negro, de verniz ou pelica.

O uso do colete era comum e havia uma predominância de gravatas-borboletas em seda, com petit-pois vermelhos, verdes ou de outras cores, mais ou menos graúdos. Se a gravata era de manta, trazia, quase sempre, um alfinete ou um prendedor de ouro, com uma pérola preciosa, ou o monograma de quem os usava.

João Alves de Melo, da Photografia Elite e João Galvão do Photo Chic eram os fotógrafos da cidade e estavam ali presentes, atendendo moças, moços ou casais que quisessem guardar, como lembrança, uma foto em uma das passarelas-pontes da praça; debruçados no belo coreto; junto a Erma com o medalhão de Nísia Floresta Brasileira Augusta; sentados em um dos bancos de ferro forjado e pinho-de-Riga; ou ao pé do chafariz com sua graciosa indiazinha apertando a cabeça da serpente, de cuja boca saía um jorro de água. A Erma, o Chafariz e os bancos sumiram; as pontes-passarelas e o coreto foram destruídos, para dar lugar a isso que vocês estão vendo.

Do primeiro andar da Escola Doméstica fundada pelo Doutor Henrique Castriciano (irmão de Eloy e de Auta de Souza), as alunas internas olhavam a paisagem festiva e respondiam aos acenos dos moços da praça. A loja Paris em Natal estava com as vitrinas iluminadas e expunha seus artigos mais finos. Por entre os pares, na praça, havia vendedores de flores e garotos que carregavam taboleiros, oferecendo açúcar candi, sequilhos, alfenins, chocolates, "Charuto" e confeitos "Baratinha". Ouvia-se também o retinir do triângulo do vendedor de cavaco chinês. A sorveteria Polyteama estava cheia e era grande o consumo dos sorvetes e dos "polys".

À noite a festa continuaria. Haveria o concerto de uma cantora lírica no Theatro Carlos Gomes e um baile a rigor no Aero Clube. Luxuosos longos, muitas jóias, casacas e fraques, além dos primeiros smokers que começavam a aparecer. João Galvão e João Alves estariam presentes, espoucando seus flashes de magnésio e documentando fotograficamente as belas e os elegantes. Depois tudo sairia publicado n’A Cigarra, do saudoso e inesquecível Adherbal de França, o Danilo, primeiro cronista social da cidade."

Numa crônica anterior, "O cine Polytheama", que era o número 252 da Praça Augusto Severo e cujo prédio não existe mais, Augusto faz uma outra referência a loja Paris em Natal:

"Pegada com o Polytheama estava a loja "Paris em Natal", um belo sobradão de balcões de ferro, onde o coronel Aureliano de Medeiros, com seus filhos Oswado e Ulisses, oferecia ao povo chique da cidade, toda sorte de artigos importados, que iam do pó de arroz ao extrato; do calçado ao chapéu da palhinha, feltro ou Panamá; do foulard de fina seda francesa aos cortes de pura casemira inglesa. O próprio interior da loja sugeria coisas da velha Europa. Paris em Natal fazia esquina com a travessa que ia dar na Alfândega Velha, hoje chamada Travessa Aureliano".

O Poytheama eu não alcancei. A Paris em Natal, sim. A conheci com todo o seu esplendor, a mais chique loja da cidade, começo dos anos quarenta. Menino ainda de calças curtas fui lá várias vezes. Meu tio Antônio Coutinho Madruga, irmão mais velho do meu pai, era o seu gerente. E eu era aluno do Colégio Pedro II, na rua Sachet, oitão do então Teatro Carlos Gomes, duas quadras só distantes da famosa loja.

Nenhum comentário: