sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Encontrei esta pérola que compartilho com você.

Nelson Rodrigues me ensinou a delirar

De Marcelo Monteiro

Cheguei ao Globo algumas semanas antes do começo da segunda temporada de Nelson Rodrigues no jornal, em 1962. Vim indicado pelo irmão dele, Paulo, e passei a ilustrar a coluna deste, que se chamava "Se a cidade contasse...". Nelson chegou em março e logo comecei a acumular os desenhos para os textos dos dois irmãos. Por dez anos, fui o único a exercer esta função no jornal, e acredito que tenha sido o único a ilustrar as colunas de Nelson (tanto no Globo quanto no "Jornal dos Sports"), inclusive "A vida como ela é". 
http://semioticas1.blogspot.com.br/2012/08/unanimidade-para-nelson-rodrigues.html

 Como conhecia meu pai de longa data (o arquiteto e ilustrador Monteiro Filho), Nelson me tratava como um filho. E isso ele demonstrava com os apelidos mais estapafúrdios. 

Quando descobriu que eu havia tido uma pequena militância esquerdista, trabalhando em jornais do Partido Comunista, passou a me chamar de "ex-quase-perigoso-revolucionário". Falava alto, para todo mundo da redação ouvir. Outro apelido muito comum (e, acreditem se quiserem, carinhoso) era "ridículo". Mas logo descobri que não era exclusivo. Eu trabalhava em uma espécie de mezanino e de lá não via a editoria de esportes. Um dia, ouvi a voz grossa dele berrando: "Ô ridículo!!" Desci correndo. Surpreso, Nelson respondeu: "O que você está fazendo aqui? Não gritei teu nome, gritei 'ridículo'!". Ele estava chamando o Freitas, o contínuo. A gargalhada foi geral!

 A vida era uma aventura. Era difícil saber o que ia brotar daquela mente criativa,
se a crônica do dia teria algum personagem surreal. Quando menos esperava, Nelson surgia com um tipo novo. Eu tinha que pensar rápido e raramente ele se metia. Uma das poucas vezes em que lembro de intervenção foi no Sobrenatural de Almeida. Fiz o esboço às pressas e fui mostrar. Já tinha cartola, capa... Ele gostou de tudo isso, mas pediu: "Bota um pouco mais sinistro". 

E por falar nesta alcunha, teve até um personagem que chamava Andrade, o Sinistro. Era um pessimista com a seleção brasileira.Foi em uma das últimas copas que Nelson assistiu. Achei aquele particularmente difícil e fui perguntar a árvore genealógica do figura.Ele me chamou para perto e falou baixinho: "O Andrade é o Evandro (Carlos de Andrade, que era diretor de redação na época). Mas não faz ele parecido!" De fato, Evandro tinha sido cronista esportivo do "Diário carioca" e adorava discutir os aspectos técnicos da coisa. 

Ou seja, era o contrário do Nelson, que de técnico não tinha nada. Vocês podem imaginar, então, as discussões futebolísticas dos dois. Naturalmente, fiz o Andrade baixinho, atarracado, o oposto do Evandro.

  Uma das últimas lembranças que tenho de Nelson infelizmente não é alegre. Em 1980, nos meses finais de vida, ele vinha à redação com uma enfermeira. Um dia fui acompanhando os dois até o hall de elevadores, onde passou um repórter esbaforido e falou para ele: "Estão cogitando teu nome para a Academia Brasileira de Letras!" Nelson botou a mão no ombro dele e disse, laconicamente: "Não dá mais tempo". Doeu ver aquilo...
 Em tanto tempo de convivência, acabei aprendendo a viajar junto com ele. É isso, se posso definir em uma frase: Nelson Rodrigues me ensinou a delirar.

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