sábado, 19 de maio de 2012

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Plural
ERICK PEREIRA
Advogado ▶ ewp@erickpereira.adv.br

A utopia do recall

O “recall” se popularizou entre nós como o recolhimento de um produto
defeituoso pelo fabricante. Produto material, bem dizer: automóveis,
brinquedos, medicamentos, eletroeletrônicos. O recall humano, o
eleitoral, em que parcela insatisfeita dos cidadãos eventualmente determina
a remoção de seu representante, permanece nosso desconhecido.

No último Congresso Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC), em
São Paulo, ousou-se discutir este instrumento político de participação
semidireta que, embora nos apareça como miragem ou um projeto de
Th omas Morus, abriga história e usos insuspeitos.

O instituto de tradição suíça foi objeto do entusiasmo de Lenin, o líder
comunista tido pelo historiador Eric Hobsbawm como “o personagem
mais infl uente do séc. XX”. Surpreendentemente, foi Lenin quem
introduziu o recall eleitoral na Constituição russa de 1918, prestígio que
se estendeu às constituições de 1933 e 1977 da União Soviética e às Cartas
da Hungria, Polônia, Romênia e das antigas Alemanha Oriental e
Tchecoslováquia.

Atualmente, o recall é acolhido em poucos países, destacando-se na
tradição da cultura política norte-americana onde o instrumento é utilizado
contra detentores de cargos nos três Poderes. O caso mais famoso
ocorreu em 2003, na Califórnia, quando o republicano Schwarzenegger
substituiu o governador democrata Gray Davis, cassado por recall. E pensar
que a cassação decorreu apenas de uma avaliação de incompetência
para solucionar uns “apagões” decorrentes de uma crise energética...

O Brasil da época de Bonifácio adotou instrumento semelhante ao
recall durante brevíssimo tempo. Algumas constituições estaduais igualmente
o abrigaram sem sucesso. Aliás, nestas plagas sempre predominaram
os oponentes do recall eleitoral, apesar das restritas regras que limitam
a sua aplicação. Num país em que o eleitorado não é valorizado na
educação do exercício da cidadania, há sempre o risco do “excesso de democracia”
pela redução da independência dos eleitos e pelos abusos de
grupos infl uentes e com poder econômico.

No pensamento de um Lenin exilado na Suíça - “um país não é democrático
se o eleitor não contar com um instrumento para retomar o
mandato concedido ao eleito” –, ou no do magistrado brasileiro Ali Mazloum
– “o atual estágio de maturidade republicana recomenda a introdução
de recall anual para patrulhar políticos” -, podemos buscar inspiração
para projetar a utopia de uma cidadania plena. Afi nal, por que
não sonhar com políticos investidos de simples servidores, representantes
dos nossos mais legítimos interesses?

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