quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Dando uma mexida neste Coisas... encontrei a crônica que abaixo republico.


http://www.google.com.br/imgres?q=casal+dan%C3%A7ando&hl
Encabulada em dó maior
Emanoel Barreto


Ela chegou. Veio em passos de pantera e de veludo azul.
Atravessou o grande salão e, fazendo isso, a música parou. Atravessou o salão e, fazendo isso, deu-se a descobrir.

Estava ali uma mulher completa, intensa, inteira, farta, doidivanas;
Petulante, sólida, perfeita;
Camarada, amiga, doce solidão a dois;
Feminina, forte, descobridora;
Caminhante, sã, insana primavera;
Distante, pertíssimo, misteriosa, bela;
Felina, feliz, atraente, difícil;
Viajante, indagadora; senhora de respostas, autora de dúvidas.
Um romance inscrito em corpo de mulher.

A festa como que parou, só para vê-la. Dirigiu-se a uma mesa, sentou-se: - Dança? A pergunta havia partido de uma voz masculina em dó maior, grave. - Sim, foi a resposta que ela deu, pondo-se de pé. Com a orquestra o cantor discorria um bolero. Os passos dos casais coleavam em meio ao claro-escuro do salão. Maracas e bongôs pontuavam a música com seu remexido côncavo-convexo.

A voz de dó maior perguntou: - Qual o seu nome? Ela respondeu em surdina: - Encabulada.- Como? - foi a dúvida seguinte, ante a resposta inesperada. - Encabulada - ela disse com um sorriso de meia lua, as costas da mão encostadas na nuca do dó maior.

- Você, encabulada? - o dó maior quis saber, pois, naquela mulher, não havia espaços de silêncio.- Eu não disse que estou encabulada. Eu disse que sou Encabulada. É diferente. Sou diferente de todos e igual a mim mesma. E como não sou resposta, mas proposta, espero sempre as perguntas. As perguntas certas. Daí, porque sou Encabulada. Não vou às pessoas, elas têm que vir até a mim. Dou a impressão de estar retraída, distante do mundo, para que me descubram o caminho. Poucos descobrem... Daí, dou a impressão de estar encabulada. Mas quando alguém me descobre, está com Encabulada. Dá para entender?

O dó maior fez que sim e continuaram a dançar boleros firmes, ajustados, justos, encaixados, mínimas, semínimas, colcheias e acordes. Os violões agudos perfuravam a noite: flores e floretes, enigma de passos.Aí, foi ela quem perguntou: - Seu nome? O dó maior pensou um pouco e respondeu: - Pode me chamar de Colecionador. Sou um colecionador. Um colecionador de situações, as mais inesperadas, estranhas, belas, difíceis, lamentáveis, boas. Situações que às vezes procuro, outras não; um tempo lamento, outro tanto gosto. Como agora, que descobri você, essa mensagem cifrada, num código que ainda desconheço, mas que vou aprender. Ficou encabulada, Encabulada?

Ela voltou com seu sorriso de meia-lua e respondeu: Não. Ela não havia ficado encabulada. Afinal, disse, uma situação se constrói a dois, passo a passo, gesto a gesto, ato a ato, palavra-por-palavra. Até que, como a brisa marinha, se transforme numa lembrança. Mas, isso, já é outra situação...

E, Encabulada e Dó Maior ficaram assim, colecionados de si, pasmos e presos ao bolero que dizia as coisas que todos os boleros dizem. E no depois do tempo, fizeram-se um só, fazendo-se brotar no meio do salão.

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